Alexandre Mury – Citação, Criação, Transgressão
Por José Alberto Gomes Machado
Professor Catedrático de História da Arte - Universidade de Évora - Portugal
[ Texto de 1 de julho de 2013 ]
Há que saber primeiro, conhecer profundamente, para poder transgredir depois.
Alexandre Mury é um profundo conhecedor das tradições da pintura ocidental, as quais subverte na sua obra artística de modo radical, por um profundo movimento de translação de sentido e por um total empenhamento, também corporal. O corpo do artista transforma-se em matéria de sua arte. E isso alarga poderosamente o conceito de auto-retrato. No caso de Mury, temos diversos auto-retratos em situação e em constante citação. São auto-retratos historiados, na velha tradição do Renascimento e do Barroco, em que o artista assume poses retiradas dos clássicos, numa subversão total, de sentido e de género. O artista barbudo reinterpreta com seu rosto e seu corpo diversos mitos, que ganham novo sentido, a partir da irrisão, do quase deboche, criando um efeito espantoso: o reactualizar de uma poderosa tradição, adaptando-a de forma contestatária e tremendamente original a uma visão contemporânea. Assim, Ganimedes, por exemplo, ganha novo e portentoso sentido, numa imagem recriada de fortíssimo impacto visual, para que concorrem, conjugados, todos os atributos de pintura e/ou fotografia e da escultura também.
A polissemia de um rosto e de um corpo detonam as categorias de masculino e feminino, de modelo e de reinterpretação, réplicas contemporâneas VIVAS de imagens de há séculos atrás, que sobrevivem como referenciais, como camadas de um palimpsesto a que se sobrepõem novas camadas vitais, o artista se transformando em sua própria obra, num exercício erudito e terrivelmente criativo de gozação total. Sim, porque raras vezes um artista se terá envolvido a tal ponto, que chega a transformar-se em novo signo para múltiplos sentidos, assumidos todos com feroz alegria, numa arte de vitalismo arrebatador.
Vejamos alguns exemplos.
O artista apresenta-se como Neptuno numa piscina insuflável, de coroa na cabeça e tridente na mão. O domínio do rei dos mares encolheu até ao limite do ridículo: seu corpo quase ocupa completamente seu domínio. A água recobre parte das pernas e metade de um pé – se o deus marinho se estender, um pouco que seja, esse seu domínio extravasará. Aqui, a pequenez da envolvente destrói o significado tradicional de poderio. Coroa, tridente e pano de pureza tornam-se irrisórios face a tal diminuição. O rei permanece, o reino encolheu até ao limite do suportável.
Numa reinterpretação de quadro famoso do maneirismo francês, Mury ocupa na banheira o lugar de Gabrielle d’Estrées, a amante de Henrique IV de França. No lugar das duas mulheres que protagonizam essa obra prima do erotismo europeu, temos agora o artista com uma boneca de plástico. O toque delicado no mamilo é substituído pela ameaça velada de uma agulha, preparando-se para fazer estoirar a boneca. Ou seja, para fazer literalmente o que toda a imagem faz de modo simbólico: estoirar e subverter o sentido. O caso ainda é mais grave: ao substituir a mulher nua original por uma boneca vulnerável e muda, o artista/protagonista transforma em objecto passivo sua parceira de imagem e transforma radicalmente o sentido original – machismo e reificação substituem uma das mais celebradas imagens lésbicas da pintura ocidental.
O desempenhar de vários papéis e assumir de vários géneros convém perfeitamente ao artista. Polivalência e transgressão multiplicam a sua imagem na sua viagem pelos séculos da arte europeia.
Num dos mais impressionantes exemplos, um Mury conspurcado e impassível assume o papel do Adão da Criação do Homem. Aqui, o ridículo deixa lugar ao trágico. É uma imagem de impossibilidade. O Criador está ausente e a Criatura se apresenta na sua digna sujidade, na assumida solidão, na fragilidade de sua nudez afirmativa. É uma imagem fortíssima, imensamente contemporânea. Aqui o artista se desnuda literalmente e é o sentido que o recobre. O Adão originário, o homem primigénio da Sistina está (re)vestido de eternidade.
Ao assumir-se como Dafne, o artista personifica um dos mitos mais fecundos da tradição antiga. A inversão de género, que é uma constante nestes exercícios de citação/transgressão, parece convir perfeitamente ao autor/objecto. A face está oculta, não porque repugnasse apresentar uma Dafne barbuda, mas para dar maior realce à cabeleira loira que oculta totalmente a face, às ramagens de loureiro, centrais para o mito e, sobretudo, à bunda delicada, verdadeira protagonista desta remitificação.
E justamente, este repetido mitificar personalizado nunca é mistificar, porque o artista se expõe plenamente, seja no que mostra de si, seja na honestidade audaciosa da nova leitura que propõe e personifica.
No Anjo do Getsémani, por exemplo, um banho dourado de barroco e um pouco de carmim na face, quase tornam credível esse Mury barbudo que esvoaça, assumindo com grande seriedade essa trasmutação, já não de género, mas de verdadeira natureza. Artista audacioso e criativo não hesita em ir além da própria natureza humana.
Ao representar-se como Anastácia, torna presente o drama de uma natureza humana amordaçada pelo mais banal cotidiano.
A visão cumulativa de todas essas fotos audaciosas tem um efeito contraditório: fazer admirar o polimorfismo hiperfacetado do artista em sua arrebatadora imaginação, mas também despersonalizá-lo, esse Mury tornado um denominador comum de tantos temas da arte e da mitologia. Por isso, a barba assume diferentes coloridos, ao ponto de no final, o artista se interrogar sobre qual é a sua verdadeira imagem.
Pessoalmente, há duas ou três que me tocam de modo especial:
Em primeiro lugar, o Sátiro – talvez a mais vitalista de todas essas autorepresentações carregadas de cultura transcendida. Nessa imagem, a natureza é caravaggesca e o personagem remete para o Barroco do Norte, de Rubens e Jordaens, dois dos pintores que mais valorizaram a corporalidade (não admira, pois, a identificação, já que Mury é um artista cerebral feito corpo vital e pujante).
Em segundo lugar, a releitura da Madona do Leite de Jean Fouquet, obra prima da pintura francesa, representando outra amante real, Agnès Sorel. Há algo de sintomático nesse revisitar das concubinas reais… Aqui, a chave de leitura é o efeito de brancura quase sobrenatural, que também marca o original. O Menino Jesus é agora um boneco branco, como branca de talco é a barba da Madona/Mury, que assume o biberão na ausência de instrumento lactante próprio…. Uma série de bonecos azuis e vermelhos enquadram a cena. E não é que o mais espantoso é que essa gigantesca gozação inteligente não deixa de produzir um efeito de majestade? Esse artista é solene, solene seu corpo e sua barba de profeta. Como aqueles entertainers que nunca riem de suas próprias anedotas, Mury é sempre sério em suas representações. O próprio esgar sorridente do Sátiro é um assumir de papel e não um convite ao riso fácil. Aqui, o riso é muito sério. Repleto de referências culturais. O Ganimedes ou a Madona do Leite são imagens muito sérias, para levar muito a sério. Mury é um artista para levar a sério no seu dinamitar autocentrado de tantas obras primas.
Finalmente, há uma imagem que me impressiona muito e que traduz, para mim, muito do que é esse grande artista e qual o significado da sua obra. Tirada no terraço de um prédio muito alto, a foto mostra um Mury de costas, nu, sentado frente aos arranha-céus. Não pode identificar-se, seu rosto não se vê, só as costas e um laivo de bunda. Diante de si, na sua e nossa frente, a majestosa solidão construída da cidade. É essa justamente a metáfora do artista. A cidade esmagadora que se cuide. Porque dentro de um instante, o artista vai erguer-se e levantar voo, arrebatado como Ganimedes. Ou então, exuberante e exibicionista, virar-lhe as costas, voltando-se para nós com o olhar irónico do sátiro, ou afagando a barba branca de pó de talco, como quem diz: “olhem para mim, sou sozinho e nu e contudo sou tanta coisa, porque meus olhos viram o passado com olhos de dinamite e o detonaram e recriaram para o futuro, com essa arma que atravessa o tempo – a ironia, parente próxima da beleza.”