Abaporu | 2010 

Detalhes / OBRA DE ARTE


Título: Abaporu

Criador: Alexandre Mury

Data de criação: 2010

Tipo: fotografia

Meio: C-print (impressão cromogênica)


Período da Arte: Contemporâneo

Movimento/Estilo: Arte Conceitual, Arte Performática

Assunto: autorretrato, homem nu, cacto, sol, efeito lens flare, movimento antropofágico.

Obras Relacionadas: "Abaporu" (1928), Tarsila do Amaral

Artistas Relacionados: Tarsila do Amaral



  Palavras-chave

#tarsiladoamaral #releitura #arteconceitual #arteperformatica #artecontemporanea #historiadaarte #artebrasileira


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Procedência: Coleção Gilberto Chateaubriand, MAM Rio
Direitos: © Alexandre Mury
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Classificação: A obra foi classificada como adequada para maiores de 14 anos, conforme a prática institucional adotada em exposições, como a da Caixa Cultural, CCBB e SESC. 

Justificativa: A classificação se baseia nas diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em critérios adotados para proteger públicos mais vulneráveis, sem isso implicar uma desvalorização do valor artístico e cultural da obra.

Condição de Acesso: Menores de 14 anos poderão acessar a exposição quando acompanhados por um responsável.


Fotografia contemporânea inspirada na icônica obra Abaporu, de Tarsila do Amaral. A imagem retrata um homem nu, de pele clara, cabelos castanhos escuros e barba cerrada, sentado sobre um pequeno monte de terra avermelhada. Suas pernas estão dobradas, com os pés firmemente apoiados no solo. O ângulo reto da câmera preserva a proporção natural do corpo, sem reproduzir a distorção estilizada dos membros inferiores e superiores que caracteriza a figura original de Abaporu. O homem apoia a cabeça sobre a mão esquerda, exibindo uma expressão contemplativa e um olhar distante.  Ao fundo, um céu azul profundo domina a cena, degradando suavemente para tons amarelados à medida que encontra o horizonte, criando um efeito visual de transição suave. O sol brilha intensamente logo atrás, entre a cabeça do modelo e um cacto, produzindo um efeito de estrela com raios difusos que acrescentam dramatismo à composição. À direita da imagem, um grande cacto escuro se ergue em contraluz, reforçando a conexão com o imaginário tropicalista e o contexto da obra original. No primeiro plano, pequenos galhos secos e folhas espalhadas pelo solo adicionam textura ao terreno. Já no segundo plano, atrás do modelo, a área sombreada destaca mato e arbustos de folhagem rarefeita, conferindo maior profundidade de campo à cena.  A fotografia recria a atmosfera de Abaporu por meio de uma abordagem expressiva distinta, combinando a luz natural intensa com o uso de flash para compensar o efeito de contraluz, acentuando os contornos do corpo e os contrastes do ambiente árido. A releitura mantém a essência da brasilidade e do modernismo de Tarsila, reinterpretando sua estética em um contexto contemporâneo e fotográfico.
Título da obra: AbaporuCriador: Alexandre MuryData de criação: 2010Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury
Releitura da obra icônica da artista Tarsila do Amaral.A fotografia está no acervo de duas coleções importantes: MAM-RJ e Museu da Fotografia Fortaleza.

A Releitura do Abaporu por Alexandre Mury: Uma Reflexão Crítica sobre Identidade, Modernidade e a Linguagem da Arte 


Ao utilizar a fotografia – um meio que, por sua natureza, registra a realidade com uma literalidade que difere da estilização modernista –, o artista desloca o sentido da obra original, evidenciando os mecanismos de construção simbólica que conferem a um objeto o status de ícone. Se o Abaporu de Tarsila adquiriu notoriedade tanto por sua qualidade plástica quanto por sua superexposição, a releitura de Mury questiona as estruturas de poder que determinam quais imagens se tornam representações hegemônicas da cultura nacional.


Além disso, sua obra insere-se em um movimento crítico que problematiza o engajamento automático e a sacralização da arte. Ao revisitar um trabalho amplamente reconhecido, Mury não apenas evoca sua fama, mas revela como a repetição e a citação de ícones visuais podem reforçar ou subverter narrativas estabelecidas. O caráter crítico dessa apropriação reside justamente na tensão entre reverência e desconstrução.



Autofagia: O Corpo e a Paisagem no Imaginário Brasileiro


Se o modernismo antropofágico de Oswald de Andrade propunha a assimilação criativa das influências externas, a obra de Mury parece operar uma autofagia: um processo em que a cultura nacional consome e ressignifica a si mesma. O corpo do artista, inserido na paisagem fotografada, não apenas remete ao Abaporu, mas também se apropria de um contexto regional específico que desafia as generalizações sobre a identidade nacional.


Embora a imagem tenha sido captada no Sudeste, sua ambientação evoca o sertão, um bioma associado a um imaginário visual que remete tanto ao regionalismo quanto à precariedade. Aqui, Mury desloca sutilmente o foco do nacional para o local, evidenciando como a construção de símbolos culturais frequentemente exclui ou simplifica nuances territoriais. A terra avermelhada, os galhos secos e a vegetação esparsa oferecem uma precisão documental que contrasta com a estilização modernista de Tarsila, revelando uma paisagem menos idealizada e mais ancorada em uma realidade geográfica e histórica.


Ao tensionar essa relação entre corpo e ambiente, Mury questiona os discursos essencialistas que permeiam a arte e a identidade brasileira, trazendo à tona a materialidade do território e sua influência na constituição do imaginário visual.



A Nudez: Entre a Iconicidade e a Vulnerabilidade


Na obra original de Tarsila, a nudez do Abaporu é estilizada, distorcida por um tratamento plástico que a afasta de qualquer conotação realista ou erótica. Em Mury, a nudez assume uma dimensão performática e autorreferente, pois não se trata de um corpo genérico, mas do corpo do próprio artista.


Aqui, a ausência de vestes não apenas reforça o vínculo entre o indivíduo e a terra, mas também evidencia a vulnerabilidade do corpo humano diante do ambiente árido. O contato direto com o solo, o calor do sol e a presença de elementos naturais como o cacto criam um contraste entre resistência e fragilidade, reforçando a dualidade entre a força simbólica da imagem e a corporeidade tangível da performance.


Além disso, o posicionamento do corpo – com a cabeça apoiada sobre a mão – remete a arquétipos clássicos da introspecção, como O Pensador de Rodin, ampliando a leitura da obra para além das questões de identidade nacional. Esse gesto sutil desloca o sentido da imagem do campo alegórico para o psicológico, introduzindo uma subjetividade que não estava presente na obra modernista.



Uma Reflexão sobre Arte e História


A releitura de Abaporu por Alexandre Mury transcende a mera apropriação e se configura como um sofisticado exercício de antropologia visual. Ao tensionar tradição e contemporaneidade, ícone e crítica, homenagem e subversão, sua obra questiona os regimes de visualidade que moldaram a arte brasileira e como se constrói o imaginário nacional.


Se Tarsila do Amaral contribuiu para um modernismo que buscava definir a brasilidade através da síntese e da estilização, Mury propõe uma abordagem que, ao invés de fixar significados, expande as possibilidades de interpretação. Sua fotografia não apenas revisita um marco da história da arte, mas também reflete sobre os modos pelos quais continuamos a ver e representar o Brasil.

Entre o Ícone e o Corpo: Performatividade e Política do Sensível na Releitura do Abaporu


A releitura do Abaporu por Alexandre Mury transcende o gesto de uma simples homenagem ou citação visual ao modernismo brasileiro. Trata-se de uma operação crítica que, ao deslocar o ícone para o campo da performance, ativa um espaço de tensão entre tradição e contemporaneidade, entre identidade e devir, entre o corpo e o signo. O corpo do artista emerge não como suporte da obra, mas como um agente disruptivo que interroga as estruturas normativas da arte e da representação.


A performatividade do corpo em Mury encontra ressonância na teoria de Judith Butler, para quem a identidade não é uma essência fixa, mas um constructo em constante mutação, produzido por atos repetidos e discursos que podem ser resignificados. O corpo performático não é um dado natural; é um campo de forças, um espaço de disputa simbólica e política, onde as categorias de gênero, sexualidade e identidade cultural são constantemente reconfiguradas. Nesse sentido, ao utilizar seu próprio corpo para reconfigurar o Abaporu, Mury não apenas questiona o legado modernista, mas também inscreve sua própria corporeidade em um jogo de significantes que desafia a estabilidade da imagem original.


Complementando essa perspectiva, Erika Fischer-Lichte propõe uma compreensão da performance como uma experiência estética que transcende a dicotomia entre sujeito e objeto. Para a autora, a performance é um evento efêmero que transforma o corpo em um meio expressivo capaz de gerar significados em constante fluxo. O corpo de Mury, ao se tornar o Abaporu, não está apenas representando algo: ele é o próprio acontecimento artístico, uma presença que desafia o espectador a reconsiderar o que vê, a partir da relação entre presença física e construção simbólica.


Gilles Deleuze e Félix Guattari ampliam essa discussão ao introduzirem a noção de "corpo sem órgãos" e "corpo em devir". Para eles, o corpo não é uma entidade fechada, mas um campo de potências que se atualizam através de linhas de fuga, de processos de desterritorialização. O Abaporu de Mury é um corpo em devir porque não se fixa em uma identidade ou forma definitiva. Ele é, simultaneamente, o eco de um passado modernista e a irrupção de uma nova corporeidade que não se deixa capturar por categorias estáticas.


Por fim, Jacques Rancière oferece uma chave para compreender o caráter político dessa operação artística. Sua teoria da "política do sensível" sugere que a arte tem o poder de redistribuir o que pode ser visto, dito e pensado. Ao colocar seu próprio corpo no centro da composição, Mury não está apenas ressignificando um ícone da arte brasileira; ele está reconfigurando o próprio regime do visível, questionando quem pode ocupar determinados espaços simbólicos e quais corpos são considerados legítimos na história da arte.


Assim, a obra de Alexandre Mury não é um simples "retorno" ao Abaporu, mas um ato performático que encarna uma série de deslocamentos críticos. Nela, o corpo é tanto meio quanto mensagem, tanto presença quanto fissura, desafiando o espectador a transitar entre o reconhecimento e o estranhamento, entre a memória e o devir.



  • Butler, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990.
  • Butler, Judith. Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. New York: Routledge, 1993.
  • Fischer-Lichte, Erika. The Transformative Power of Performance: A New Aesthetics. New York: Routledge, 2008.
  • Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mille Plateaux: Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Éditions de Minuit, 1980. [Tradução em português: Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, São Paulo: Editora 34, 1995.]
  • Rancière, Jacques. Le Partage du Sensible: Esthétique et Politique. Paris: La Fabrique, 2000. [Tradução em português: A Partilha do Sensível: Estética e Política, São Paulo: Editora 34, 2005.]
  • Rancière, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

Arte e Meme: A Tensão entre a Obra e a Cultura da Memeficação

O século XXI testemunha a ascensão dos memes como forma dominante de comunicação simbólica na cultura digital. Oriundos de um conceito teórico formulado por Richard Dawkins em O Gene Egoísta (1976), os memes se tornaram, no ambiente virtual, unidades de significado replicável, que operam através da ironia, da concisão, da reaplicação e da viralidade.

Essa lógica de circulação está intimamente ligada ao que Pierre Lévy chamou de "inteligência coletiva", onde o valor simbólico é produzido de forma distribuída e interconectada. No ambiente da economia da atenção, conforme analisa Yves Citton, a visibilidade torna-se capital simbólico, e a viralidade de uma imagem como o Abaporu de Mury pode tanto impulsionar quanto deslocar seu valor artístico.

A arte que entra em circulação como meme é, ao mesmo tempo, empoderada e diluída: empoderada por sua difusão, diluída por sua adesão a mecanismos que priorizam o impacto instantâneo em detrimento da contemplação aprofundada. O mercado de arte, por sua vez, precisa negociar esse novo ecossistema, onde o valor de uma obra também é medido por métricas digitais de engajamento.

Neste contexto, artistas contemporâneos que trabalham com apropriação, releitura e iconoclastia passam a ocupar um espaço ambíguo: suas obras se inserem ou são absorvidas pela cultura de memeficação, sem necessariamente se configurarem como memes. Surge, assim, uma tensão complexa entre a obra de arte e o meme, que exige uma análise cuidadosa à luz da teoria da comunicação, da estética e da cultura contemporânea.


Meme e Mimesis: Origem e Controvérsia 

O conceito de meme, como formulado por Dawkins, é uma analogia biológica: da mesma forma que os genes são unidades de herança biológica, os memes são unidades de herança cultural, que se replicam de mente em mente. Em sua origem, o meme não estava atrelado ao humor ou à cultura de massa, mas a qualquer ideia que se reproduzisse com eficácia: uma canção, uma crença religiosa, uma moda. Com a internet, o termo foi apropriado por comunidades online para descrever imagens e textos que circulam velozmente, muitas vezes com função humorística, política ou crítica.

Segundo Limor Shifman, em Memes in Digital Culture (2014), os memes são caracterizados pela sua replicabilidade, adaptabilidade e participação coletiva. Não são criações individuais fixas, mas processos colaborativos e muitas vezes anônimos de reinterpretação. Essa natureza aberta contrasta com a ideia tradicional da obra de arte como objeto autoral, fechado em sua forma e significado.


Apropriação e Iconoclastia: A Arte na Era Digital 

A partir dos ready-mades de Marcel Duchamp, a arte contemporânea incorporou a apropriação como estratégia legítima. Em obras como as de Sherrie Levine ou Barbara Kruger, e também em práticas brasileiras que se relacionam criticamente com a tradição antropofágica de Oswald de Andrade, a repetição, a citação e o deslocamento são empregados como modos de criação autônoma e afirmação cultural. Essas práticas não imitam modelos externos, mas reelaboram imagens e símbolos em diálogo com contextos locais, ampliando o repertório da arte global.

O artista Alexandre Mury insere-se nessa tradição ao construir performances-fotografias que retomam ícones da história da arte, não como paródias simplistas, mas como exercícios sofisticados de mimese, ironia e subversão. Em sua obra Abaporu, Mury encarna o personagem da pintura original de Tarsila do Amaral, fundando uma "escultura viva" que transporta a imagem para a tridimensionalidade do corpo performático.

Trata-se de um gesto deliberado de reinterpretação, que, ao circular amplamente nas redes sociais, suscitou leituras ambíguas: para alguns, uma homenagem sensível e crítica; para outros, um meme irreverente. A obra viralizou em plataformas como Twitter, Instagram e Facebook, acumulando milhares de curtidas, compartilhamentos e reinterpretações. O reconhecimento não se limitou ao ambiente digital: antes de ficar famosa na internet, a obra foi adquirida por duas instituições de prestígio — o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) e o Museu da Fotografia Fortaleza — consolidando seu valor artístico no circuito institucional.


A Diferença entre Obra e Meme à Luz de Umberto Eco e Roland Barthes 

Umberto Eco, em Obra Aberta (1962), argumenta que a obra de arte moderna se constitui pela abertura à interpretação, pelo convite à participação do leitor/espectador. Essa abertura, no entanto, é delimitada por uma estrutura estética e formal que ancora os múltiplos sentidos possíveis. A obra Abaporu de Mury, embora aberta à circulação, mantém sua autoria e projeto estético — diferentemente de um meme, cuja origem frequentemente é anônima e cujo formato tende à despersonalização.

Roland Barthes, em A Morte do Autor (1967), afirma que o sentido de um texto se constrói na leitura, e não na intenção do autor. Embora essa ideia aproxime a obra de arte da lógica dos memes, há uma diferença essencial: a obra carrega um grau de elaboração simbólica que resiste à obsolescência e à volatilidade das imagens produzidas para viralizar. A estética do meme opera pela instantaneidade e pela ironia eficaz; a da obra de arte, mesmo quando irônica, carrega densidade, camadas e memória.


Viralidade e a Estetização da Memória Digital 

Para Byung-Chul Han, a sociedade contemporânea sofre de "excesso de positividade": tudo deve ser visível, compartilhável, quantificável. Nesse contexto, a viralidade torna-se um critério estético, ainda que inconscientemente aplicado. Obras como o Abaporu de Mury são percebidas como bem-sucedidas não apenas por sua elaboração formal, mas por sua capacidade de gerar engajamento. A viralidade não substitui o valor artístico, mas interfere na maneira como esse valor é reconhecido, distribuído e consumido.


Iconofagia e Reverência Crítica: Didi-Huberman e os Usos das Imagens 

Georges Didi-Huberman propõe que o poder das imagens está em sua capacidade de sobreviver ao tempo e de se reconfigurar em novos contextos. Ele argumenta que “ver é ser visto pelas imagens”, ou seja, que as imagens nos olham de volta e nos implicam. Recriar o Abaporu é também ser olhado por ele, ser interpelado por seu legado modernista e pelo imaginário nacional que evoca. Nesse sentido, a releitura de Mury não é um gesto iconoclasta, mas iconofágico: devora criticamente a imagem para devolvê-la transformada.


A Economia da Atenção e a Dialética entre Valor Artístico e Valor Midiático 

A viralização do Abaporu expõe um ponto-chave da contemporaneidade: o entrelaçamento entre o valor artístico institucional e o valor midiático digital. A aquisição da obra por museus legitima sua relevância no campo da arte, enquanto sua circulação em redes sociais a inscreve em uma lógica algorítmica de valor, baseada na atenção, nos likes e no compartilhamento.

A tensão entre esses dois sistemas de valoração — o curatorial e o digital — não é apenas paralela, mas dialética: um alimenta o outro. O reconhecimento institucional pode ser catalisado pelo êxito midiático, assim como a visibilidade nas redes pode ser redimensionada pela chancela dos museus. Nesse cenário, o artista contemporâneo atua como mediador entre campos de valor que antes se opunham, mas hoje coexistem em regime de contaminação mútua.


Conclusão: Quando o Meme Encontra a Obra — O Artista como Agente Duplo 

A obra de Alexandre Mury revela-se exemplar para se pensar os trânsitos entre arte e cultura digital. Ela não apenas incorpora linguagens populares e estratégias visuais de alto impacto, mas também resiste a ser consumida apenas como produto viral. Há, em Abaporu, uma tensão produtiva entre o efêmero e o duradouro, entre o popular e o sofisticado, entre o meme e a obra.

Nesse campo expandido da estética digital, o artista atua como agente duplo: consciente das estratégias de visibilidade que regem a cultura da atenção, mas fiel a um projeto poético que ultrapassa o riso fácil. Seu gesto é irônico, mas também é reverente. Sua obra é compartilhável, mas permanece crítica. A memeficação não esvazia seu trabalho — apenas amplia suas possibilidades de recepção.

Ao acolher essas ambiguidades, Abaporu se torna mais do que um sucesso viral: torna-se uma chave para compreender os novos modos de circulação, recepção e valoração da arte no presente. A arte, longe de se retirar diante da cultura digital, pode habitá-la de forma inventiva, crítica e profundamente simbólica. 


Abaporu de Alexandre Mury: estética da nudez, censura algorítmica e o juízo artificial da arte


A obra de Alexandre Mury, inspirada na emblemática pintura “Abaporu” de Tarsila do Amaral, ocupa um lugar de destaque em instituições de peso, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) e o Museu da Fotografia de Fortaleza (MFF). Ademais, sua presença em acervos de instituições culturais e em livros didáticos evidencia o valor educacional e histórico da imagem. No entanto, em plataformas digitais – tais como Facebook, Twitter e Pinterest –, a mesma obra é submetida a procedimentos de moderação automática que a classificam, de forma simplista, como conteúdo inadequado, resultando em sua remoção e na punição do artista. Essa contradição revela uma problemática central: a incapacidade dos sistemas automatizados, fundamentados em técnicas de reconhecimento de imagem, de captar a complexidade e a intenção crítica intrínsecas à produção artística.Essa tensão abre caminho para uma reflexão mais ampla sobre os limites do juízo algorítmico frente ao juízo estético, e como a arte contemporânea é desafiada (e desafiadora) em tempos de inteligência artificial.


Um corpo sem escândalo: a obra e seu contexto

Abaporu, na versão de Mury, desloca a deformação modernista da original tarsiliana para a crueza documental da fotografia. Ao se fotografar nu, sentado sobre um monte de terra, Mury incorpora uma corporalidade que é ao mesmo tempo autorretrato, citação e dissidência estética. A ausência de erotização explícita — o corpo em recolhimento, o olhar contemplativo, os membros posicionados de modo a não expor áreas tradicionalmente censuradas — convida à leitura estética e simbólica, não pornográfica.

Contudo, o aparato técnico das plataformas digitais não lê intenção nem sutileza. Lê pixels. A permanência da censura sobre Abaporu de Mury, mais de 10 anos após sua criação, denuncia o choque entre o juízo estético humano — informado por história, crítica e cultura — e o julgamento algorítmico, quantitativo e excludente. 


Da pele ao pecado: algoritmos, opacidade e o novo moralismo

Sistemas de moderação automatizada como os utilizados por Facebook, Instagram, Twitter e Pinterest baseiam-se em redes neurais profundas treinadas sobre bancos de dados massivos, compostos por milhões de imagens marcadas como "nudez", "violência", "explícito" ou "seguro". O aprendizado ocorre por repetição: algoritmos "aprendem" que certa quantidade de pele, tons de cor, formatos ou posições anatômicas costumam indicar conteúdo proibido.

Mas a IA não pensa — ela calcula probabilidade.

Ela não reconhece que o corpo nu pode ser um ato poético, um protesto ou uma metáfora da brasilidade, como é o caso de Abaporu. A decisão de censura é, portanto, mecânica, binária, tautológica: "é pele demais? é explícito". Pouco importa se essa imagem está em cartilhas educacionais ou em salas de aula.

Esse novo moralismo tecnológico se esconde sob o disfarce da neutralidade técnica. No fundo, é a reedição de antigas repressões: o nu como escândalo, a arte como risco, o corpo como problema — especialmente quando o corpo é brasileiro, tropical, e não domesticado pela estética higienizada do Ocidente eurocêntrico.


A Persistência do Erro: falhas epistemológicas da IA

Mesmo com melhorias nas técnicas de computer vision, como YOLOv5, DETR e os modelos multimodais (ex: CLIP, do OpenAI), que podem correlacionar imagens e texto, ainda não há acoplamento com sistemas de análise estética ou crítica de arte. Isso revela:

Uma falha ontológica: a IA não reconhece o “valor artístico” de uma imagem;

Uma falha epistemológica: o conhecimento que ela reproduz é limitado aos dados que recebeu;

Uma falha sociopolítica: a censura atua seletivamente sobre artistas independentes e corpos dissidentes, como o corpo nu e tropicalizado de Mury, visto como fora do padrão eurocêntrico de “nudez aceitável”.


A máquina julga sem ver: crítica à lógica classificatória da IA

No plano filosófico, Immanuel Kant distingue dois tipos de juízo: o juízo determinante, que aplica regras previamente conhecidas, e o juízo reflexionante, que busca compreender o particular sem uma regra prévia, permitindo a abertura à experiência estética. Este último é o que rege a arte, que depende de contexto, intenção, historicidade e subjetividade.

Os algoritmos de moderação de conteúdo, ao contrário, operam exclusivamente no regime do juízo determinante: classificam imagens segundo padrões fixos, estatísticos, binários. O “erro” que cometem ao censurar Abaporu de Mury — e tantas outras obras — não é apenas técnico, é ontológico: a máquina não compreende o valor simbólico de um corpo, porque não lê metáforas, nem reconhece historicidade. O pixel exposto é interpretado como pele, e a pele como potencial transgressão, independentemente do campo semântico da arte.


Esse conflito entre classificação e interpretação se tornou particularmente visível em outros episódios emblemáticos:

A fotografia da napalm girl (Nick Ut, 1972), vencedora do Prêmio Pulitzer, foi removida do Facebook por conter nudez infantil, mesmo sendo símbolo universal contra a guerra do Vietnã. Após protestos de jornalistas e artistas, a imagem foi restaurada, mas o episódio evidenciou a falha estrutural do julgamento algorítmico diante do valor histórico e artístico.

A performance “Nude with Skeleton”, de Marina Abramović, em que a artista permanece imóvel sob um esqueleto humano, foi repetidamente retirada de plataformas por violar "diretrizes de nudez", apesar de seu evidente caráter meditativo e existencialista.

Mesmo obras clássicas como a “Vênus de Willendorf”, escultura paleolítica datada de 25 mil anos, foram censuradas em redes sociais como Facebook, sob alegação de “conteúdo impróprio”. Uma ironia: o corpo mais antigo da história da arte, reduzido a uma transgressão digital.


Esses exemplos evidenciam a incompatibilidade estrutural entre a lógica classificatória da IA e os modos de leitura da arte. A inteligência artificial, mesmo em sua forma mais sofisticada, ainda carece daquilo que Jacques Rancière chamaria de um “regime estético de visibilidade”: a capacidade de compreender que as imagens não se esgotam em sua aparência, mas operam no campo simbólico, político e cultural.


Sistemas Híbridos e Aprimoramento Contínuo

O mecanismo de censura de conteúdo sexual evoluiu de métodos simples e heurísticos para sofisticados modelos de deep learning, que conseguem extrair e interpretar automaticamente características complexas em imagens. Contudo, a evolução técnica revela que, enquanto os algoritmos oferecem escalabilidade e desempenho, a compreensão plena do contexto cultural e estético ainda exige a integração de elementos humanos e multidisciplinares. Essa sinergia entre automação e intervenção humana é fundamental para garantir que a moderação de conteúdo seja tanto precisa quanto sensível à diversidade de expressões artísticas e culturais.


Para mitigar os riscos de falsas classificações, muitos sistemas modernos adotam modelos híbridos que combinam:

Classificação Automatizada com Revisão Humana (Human-in-the-Loop): Após a análise inicial pelo algoritmo, casos ambíguos ou de alto risco podem ser encaminhados para moderação manual. Esse mecanismo melhora tanto a precisão quanto a adaptabilidade do sistema.

Feedback e Atualização Contínua: O uso de feedback dos moderadores humanos e dos usuários permite o re-treinamento periódico dos modelos. Técnicas de aprendizado contínuo e atualização de pesos (online learning) ajudam a adaptar o sistema frente a novas tendências e variações culturais na representação da sexualidade.


Arte e opacidade: quando a imagem se recusa a ser decifrada por máquinas

Há também um ponto crucial no que diz respeito à opacidade como estratégia estética. A arte contemporânea muitas vezes desafia os sistemas de reconhecimento porque trabalha justamente com a ambiguidade, o não-dito, o não-representável em padrões formais.

Do ponto de vista técnico e interpretativo, a imagem não apresenta conteúdo censurável. A composição é cuidadosa e a nudez está integrada ao conceito da obra, que discute identidade, brasilidade e releituras críticas da arte. O Abaporu de Mury é uma obra com forte carga semiótica; Uma imagem com proposta estética e cultural estruturada; um uso legítimo da nudez como linguagem plástica.


Análise da imagem de Mury como sistema de interpretação visual:


Em Abaporu de Mury, o corpo não está ali para seduzir, mas para refletir. A nudez é um elemento de deslocamento, não de fetiche. No entanto, os sistemas computacionais de moderação não estão equipados para reconhecer esse deslocamento — e por isso punem o que não entendem. A consequência é a reconfiguração da iconoclastia: não mais o ataque ao sagrado, mas a supressão de tudo aquilo que escapa à gramática da máquina.


A contradição da visibilidade: arte aceita nos museus, punida nos feeds

A contradição é gritante. Abaporu é pedagogicamente validada, institucionalmente legitimada e historicamente situada. E, ainda assim, é punida com suspensões, ocultações e bloqueios.

Enquanto isso, a própria internet está repleta de conteúdos sexualizados em camadas irônicas, que exploram a estética da erotização velada — como genitálias sob roupas apertadas ou vídeos com conotações explícitas não detectadas por IA. Isso revela uma assimetria no julgamento algorítmico: a ironia passa, a arte não.

O que está em jogo é quem determina o valor de uma imagem — e por quais critérios. Enquanto não houver incorporação de métricas interpretativas culturais nos sistemas de moderação, a tensão entre arte e censura continuará a se repetir. Abaporu, de Alexandre Mury, torna-se assim um caso emblemático não apenas da censura da nudez, mas da censura da inteligência: aquela que ignora o significado e pune apenas a superfície da imagem. E justamente por isso, sua censura não é um erro acidental, mas um sintoma revelador da nossa tecnocracia cultural.

Curiosamente, conteúdos explicitamente eróticos, mas cobertos por tecidos finos, insinuando genitálias, são muitas vezes tolerados nas plataformas. Os algoritmos priorizam a detecção de desnudez explícita e genitais visíveis. Há uma tendência permissiva com imagens que utilizam "linguagem visual codificada", frequentemente associada a estratégias de mercado. O sistema é mais indulgente com imagens geradas por influenciadores, celebridades e conteúdo patrocinado, o que indica também uma modulação econômica e política da censura.


Estratégias de resistência: codificar a arte, driblar a máquina

O artista contemporâneo enfrenta agora o desafio de negociar com sistemas técnicos opacos. Para que obras como Abaporu circulem sem punições, Mury pode adotar estratégias híbridas:

Essas táticas, no entanto, também denunciam o absurdo: por que a arte precisa se justificar para existir?

ACERVO DE IMPORTANTES COLEÇÕES

Link

 Mostra Novas Aquisições 2010 – 2012  Coleção Gilberto Chateaubriand, MAM-RJ

A mostra “Novas Aquisições 2010 – 2012″, Coleção Gilberto Chateaubriand, MAM-RJ, apresentou parte das 195 aquisições da coleção no período de abril de 2010 a março de 2012, revelando as tendências da arte contemporãnea nacional. Os artistas recém integrados à coleção representam um panorama do pensamento e o olhar de Gilberto Chateaubriand sobre a arte brasileira, uma celebração vigorosa do colecionador na busca de novos artistas nas diversas regiões do país. Cedida em comodato ao MAM, a Coleção Gilberto Chateaubriand oferece um panorama da arte brasileira.

O "Abaporu" de Alexandre Mury, 2012ao lado da obra "Mulata com leque", 1937de Emiliano Di Cavalcanti, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio).

"Inserimos algumas obras já referenciais no meio da exposição, e levamos alguns “novos” para dentro de “Genealogias do Contemporâneo”, a mostra permanente do Museu. A ideia é repetir nestas "Novas Aquisições" os núcleos temático-conceituais que recortam a exposição principal do museu, e que reúnem nossas referências modernas e contemporâneas."  

Luiz Camillo Osorio (curador)

"Certas questões – relativas à identidade brasileira, à nossa conflituosa sociabilidade, ao lugar do corpo e da tradição construtiva – se articulam e se renovam em momentos distintos da nossa história da arte. (...) Muitos dos artistas hoje canônicos foram em outro momento, no começo da própria coleção, parte de novas aquisições. Além disso, de forma cada vez mais rápida o artista contemporâneo é legitimado institucionalmente e faz parte das coleções dos museus. "  

Luiz Camillo Osorio (curador )

Referência

Alexandre Mury's reinterpretation of the iconic "Abaporu" painting.  Mury's concept of "autofagia" (self-consumption) as contrasted with the original "antropofagia" (cultural cannibalism) movement.

Mury's work represents a significant shift in perspective:

This recontextualization indeed offers a provocative update to Brazilian art history, creating a dialogue between past and present while questioning how cultural identity forms in our contemporary global landscape. Mury's "inverted" challenges dependence on external influences and proposes an internal renewal process that seems particularly relevant today.

A abordagem de Alexandre Mury, ao reexaminar o ícone modernista Abaporu, propõe uma reflexão complexa sobre identidade cultural e os processos de apropriação histórica. Aqui estão alguns pontos para aprofundar essa análise:
1. Recontextualização do Simbolismo ModernistaO Abaporu original, de Tarsila do Amaral, foi um marco na construção de uma identidade brasileira, representando a ideia de “antropofagia” — a absorção e transformação das influências estrangeiras em uma linguagem artística única. Mury, ao propor o conceito de “autofagia”, inverte esse processo: em vez de “devorar” o outro para construir algo novo, ele se volta para o próprio interior da cultura nacional, examinando seus elementos de forma introspectiva. Essa autocrítica pode ser entendida como um movimento de atualização, onde a obra deixa de ser apenas um símbolo de ruptura com o passado colonial para se tornar um espelho que reflete as contradições e potencialidades da cultura contemporânea.
2. A Ideia de “Autofagia” na ArteO termo “autofagia” evoca a imagem de um organismo que se alimenta de si mesmo para se renovar. No contexto da arte, isso sugere um processo de autocrítica e reinvenção, onde a própria cultura é o objeto e o agente de transformação. Mury parece desafiar a narrativa tradicional do movimento antropofágico, propondo que a modernidade brasileira não depende apenas da assimilação de influências externas, mas também de uma análise profunda dos próprios traços culturais. Essa postura pode ser interpretada como uma resposta à globalização, onde a constante mistura de referências exige uma nova forma de autoavaliação e ressignificação.
3. Atualização da História da Arte BrasileiraAo “virar a mesa” na tradição antropofágica, Mury não nega a importância histórica do processo de deglutição cultural proposto por Tarsila e seus contemporâneos. Em vez disso, ele amplia o debate para incluir a necessidade de uma reflexão interna que contemple os desafios e as complexidades do presente. Essa reinvenção propõe que o passado não seja apenas revisto como um ponto de ruptura, mas também como um campo de diálogo com as transformações sociais e culturais atuais. Dessa forma, a obra se torna um convite para repensar a identidade nacional, questionando tanto os mecanismos de apropriação quanto os caminhos para a renovação artística.
4. Implicações Críticas e ContemporâneasA abordagem de Mury pode ser vista como um reflexo das mudanças na forma como a cultura é consumida e produzida na era contemporânea. Em um mundo marcado pela abundância de referências e pela interconexão global, o ato de voltar-se para si mesmo — de realizar uma “autofagia” — torna-se uma estratégia para resgatar a autenticidade. No entanto, esse processo também levanta questões: será que essa introspecção pode limitar o diálogo com outras culturas ou, pelo contrário, enriquece a compreensão dos elementos internos que definem a brasilidade? A resposta pode residir justamente nesse equilíbrio delicado entre autoanálise e abertura para o novo.
ConclusãoConcordo com a ideia de que a abordagem de Mury oferece um olhar atualizado e provocativo sobre a história da arte brasileira. Ao propor uma “autofagia” cultural, ele não apenas reinterpreta um ícone do modernismo, mas também estimula uma reflexão necessária sobre a identidade e a evolução do cenário artístico nacional. Essa invertida genial questiona a dependência das influências externas e coloca a cultura brasileira em um processo de renovação interna, que é, sem dúvida, um debate relevante para o contexto contemporâneo.

Repercussão

O GloboSegundo Caderno | Gente Boa 23/03/2012 
TV UolSegundo Caderno
O GloboRio Show
Revista História
RG - PORTAL TERRAARTE | entrevista 23/03/2012 
O GloboSegundo Caderno | Gente Boa 23/03/2012 
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