Gabrielle d'Estrées e sua irmã | 2011

Detalhes / OBRA DE ARTE


Título: Gabrielle d'Estrées e sua irmã 

Criador: Alexandre Mury

Data de criação: 2011

Tipo: fotografia

Meio: C-print (impressão cromogênica)


Período da Arte: Contemporâneo

Movimento/Estilo: Arte Conceitual, Arte Performática

Assunto: dramatização, personagem histórico, peruca, teatro, tecido de Chita, Cetim Vermelho, boneca inflável, agulha de costura

Obras Relacionadas: "Gabrielle d'Estrées e sua irmã, a Duquesa de Villars", Século XVI (c. 1594), Segunda Escola de Fontainebleau (maneirismo francês)

Artistas Relacionados: maneirismo francês



  Palavras-chave

#releitura #tableauvivant #arteconceitual #arteperformatica #artecontemporanea #artebrasileira #autorretrato


______________
Procedência: Alexandre Mury Coleção Particular / Acervo Pessoal  de Obras de Arte
Direitos: © Alexandre Mury
O artista ocupa o lugar "Gabrielle d'Estrées e sua irmã"(óleo sobre tela do Século XVI, de autor desconhecido), sem camisa, usando apenas uma peruca loira elaborada e brincos de pérola, No lugar da irmã, uma boneca inflável. Em suas mãos, uma agulha de costura de proporções exageradas aponta ameaçadoramente para o corpo sintético da boneca. O fundo é construído com uma combinação intencional de tecidos: cetim vermelho e chita florida, criando uma atmosfera que remete tanto aos retratos históricos quanto aos teatros populares brasileiros.
Título da obra: Gabrielle d'Estrées e sua irmãCriador: Alexandre MuryData de criação: 2011Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury

A releitura de Alexandre Mury da obra "Gabrielle d’Estrées e sua irmã", originalmente atribuída à Escola de Fontainebleau (século XVI), encarna uma poderosa articulação de camadas conceituais que tensionam os limites entre a história da arte, a psicanálise, a antropologia e a estética contemporânea. Sua composição dialoga não apenas com o legado imagético do Renascimento francês, mas também com os dispositivos de representação, desejo, e poder que atravessam o corpo humano e suas simbolizações ao longo dos tempos.


A substituição da figura da irmã por uma boneca inflável aponta para uma investigação conceitual radical: a boneca, ícone do erotismo artificial e da mercantilização do corpo, exacerba a questão da ausência de subjetividade na objetificação do feminino. A obra, assim, escancara a desumanização, questionando o que resta de humano em corpos que se tornam "suportes simbólicos" para projeções patriarcais e consumistas.


A intervenção de Mury reconfigura o corpo como objeto ritualizado. O uso de seu próprio corpo enquanto "escultura viva" – prática característica de sua obra – instaura um campo de transgressão onde o corpo do artista é ao mesmo tempo, oferenda e crítica. Ao incorporar a peruca que remete ao estilo de Gabrielle d’Estrées, Mury invoca o conceito de "mimetismo" de Roger Caillois, em que o corpo se torna um simulacro, um veículo de travestimento simbólico que colapsa as fronteiras entre o eu e o outro, o presente e o passado.


A presença da boneca inflável, em contraposição ao corpo performático do artista, opera uma dialética perturbadora entre o orgânico e o inanimado. A boneca, concebida para simular intimidade, emerge como uma crítica à construção cultural do feminino enquanto objeto manipulável, destituído de agência. Mury recupera a narrativa histórica e a ressignifica para os debates de gênero, identidade e consumo no presente. Sua releitura aponta para a artificialidade de todas as narrativas, tanto da história da arte quanto da construção do sujeito, escancarando a fragilidade e a potência desses sistemas.


A agulha que perfura o mamilo não apenas tensiona os limites do corpo, mas os da própria arte: até onde podemos ir na busca de sentido? E o que é revelado quando, como a agulha, atravessamos os véus da representação? Mury nos convida a não apenas olhar, mas a habitar as inquietações que sua obra suscita, tornando-se cúmplices em sua exploração do humano e de seus simulacros. A troca do toque pelo uso da agulha transforma a ação em um questionamento, não apenas do prazer ou da violência, mas da própria natureza do vínculo humano.

© RMN / René-Gabriel Ojéda


Segunda Escola de Fontainebleau (maneirismo francês)Retrato presumido de Gabrielle d'Estrées e sua irmã, a duquesa de Villars (Gabrielle d'Estrées e sua irmã) Século XVI (c. 1594)Óleo sobre madeira96 x 125 cmMusée du Louvre

Sobre a referência

"Gabrielle d'Estrées e sua irmã, a Duquesa de Villars" é uma obra emblemática da Segunda Escola de Fontainebleau, pintada por volta de 1594, durante o reinado de Henrique IV da França. Atribuída a um autor desconhecido, a pintura é amplamente reconhecida como uma das mais enigmáticas do maneirismo francês, caracterizada pela sua sofisticação técnica, simbolismo elaborado e narrativa visual singular. Atualmente preservada no Museu do Louvre, em Paris, a obra encapsula a tensão entre a esfera privada e as dinâmicas públicas de poder na corte renascentista.

A pintura foi concebida em um momento histórico crucial, no qual Henrique IV buscava consolidar sua autoridade após décadas de conflitos religiosos que devastaram a França. Sua conversão ao catolicismo em 1593, marcada pela célebre frase "Paris vale uma missa", foi um gesto político decisivo que pavimentou o caminho para a pacificação do reino. Nesse contexto, Gabrielle d'Estrées, amante do rei e protagonista da obra, desempenhou um papel político significativo. Grávida do futuro César de Vendôme, Gabrielle era uma figura central nas intrigas da corte, e a pintura reflete tanto sua posição privilegiada quanto as controvérsias que a cercavam.

No centro da composição, Gabrielle d'Estrées aparece com sua irmã, a Duquesa de Villars, em uma cena de intimidade desconcertante. O gesto icônico da irmã ao beliscar o mamilo de Gabrielle é amplamente interpretado como uma alusão à gravidez da amante do rei, um símbolo de fertilidade e maternidade que transcende a mera referência pessoal para comunicar uma mensagem de relevância política. Este gesto, situado em um espaço privado sugerido pelo cenário do banho, estabelece um contraste marcante entre a sensualidade da cena e seu propósito oficial. A inclusão de elementos como o anel na mão de Gabrielle – representando o compromisso do rei em legitimá-la como sua esposa – e a presença da criada ao fundo, ocupada em um ato doméstico, adiciona camadas de significação que conectam a intimidade do cotidiano ao esplendor da realeza.

A estética da obra é um exemplo primoroso do maneirismo francês. A paleta rica e o uso de contrastes sutis conferem à cena um tom delicado, enquanto a atenção aos detalhes – especialmente nas texturas dos tecidos e nas joias – demonstra a excelência técnica do pintor. No entanto, é o simbolismo complexo que eleva a pintura a um lugar de destaque na história da arte. As cortinas vermelhas que emolduram a cena remetem à realeza, enquanto a escolha de um espaço privado evoca um senso de vulnerabilidade, intimidade e sensualidade, elementos que contrastam com a representação oficial das figuras retratadas.

O impacto da pintura, tanto na época de sua criação quanto em análises contemporâneas, é profundo. À sua época, a obra foi considerada polêmica pela exposição franca de elementos corporais e íntimos, ao mesmo tempo que celebrava a ascensão social de Gabrielle através de sua relação com o rei. No contexto atual, ela é frequentemente explorada em estudos sobre gênero, poder e erotismo, sendo um campo fértil para abordagens feministas e sociológicas que investigam a relação entre sexualidade e autoridade.

A ambiguidade da obra – simultaneamente erótica e política, íntima e simbólica – continua a inspirar artistas e teóricos, gerando releituras que expandem seu alcance interpretativo. Seu legado perdura como uma representação complexa das dinâmicas de poder feminino e da influência das mulheres em contextos históricos marcados por hierarquias patriarcais. Ao mesmo tempo, sua técnica e composição permanecem um testemunho duradouro da sofisticação da Escola de Fontainebleau, reafirmando seu lugar na história da arte como uma obra que transcende seu tempo e continua a instigar discussões estéticas e culturais.

SOBRE A PESQUISA HISTORIOGRÁFICA

O site não é apenas um suporte para a obra; ele é parte integrante da experiência crítica de interpretá-la. A estrutura historiográfica e as associações criadas são preciosas porque oferecem ao leitor múltiplas camadas de acesso à obra, respeitando sua complexidade e recusando respostas fáceis. Essa abordagem se alinha a uma tradição contemporânea de análise interdisciplinar, onde antropologia, história da arte e psicanálise são colocadas em diálogo para expandir os horizontes da interpretação.

Além disso, a organização temática – vulnerabilidade, dor, prazer, a relação com o inanimado – torna-se não apenas um guia para a compreensão da obra de Mury, mas também um convite para repensarmos nossas próprias relações com o corpo, o outro e os objetos que nos cercam. É um site que, como a obra que representa, provoca, instiga e nos obriga a olhar mais de perto, mesmo quando o que vemos nos desconcerta.

O toque no peito do outro é um gesto carregado de ambiguidade e potência simbólica. O site reflete essa complexidade ao conectar representações históricas, como a gestualidade erótica e maternal do Renascimento (exemplificada em "Gabrielle d’Estrées e sua irmã"), a questões contemporâneas sobre consentimento, poder e intimidade.

© The Metropolitan Museum of Art

Fotógrafo desconhecidoBoneca Alma Mahler feita para Oskar Kokoschka por Hermine Moos1919Fotografia, Impressão em gelatina de prata9,5 x 14,7 cmThe Metropolitan Museum of Art

Oskar Kokoschka teve um relacionamento intenso e turbulento com Alma Mahler entre 1912 e 1915. O relacionamento deles foi marcado por paixão obsessiva, mas também por conflitos constantes. Devastado pela separação, em 1918, já estabelecido como professor na Academia de Artes de Dresden, ele comissionou uma boneca em tamanho natural à fabricante de bonecas. Ele levava-a a óperas e outros eventos culturais em Dresden, chegando a alugar um camarote separado para ela. A boneca era vestida com roupas caras e o artista fazia esboços dela constantemente. Kokoschka tratava a boneca como uma presença real em sua vida, embora fosse sempre consciente de sua artificialidade.

© Fondation Oskar KokoschkaVG Bild-Kunst, Bonn 2021


Oskar KokoschkaAutorretrato com Boneca (Alma Mahler doll)C. 1922Óleo sobre tela85 x 120 cmStaatliche Museen zu Berlin

Kokoschka fez da própria boneca o assunto de dezenas de desenhos e pelo menos três pinturas importantes. O "Autorretrato com Boneca" é significativo, pois ele escolheu retratar a si mesmo com a boneca, documentando esta relação peculiar. Logo após completar a pintura, Kokoschka organizou uma festa regada a vinho onde, num clímax dramático, decapitou a boneca e derramou vinho tinto sobre ela, numa espécie de ritual catártico. É interessante notar que este episódio da boneca precedeu em várias décadas as explorações artísticas contemporâneas com bonecas e manequins (pensemos em Hans Bellmer ou Cindy Sherman).




Lovis CorinthAutorretrato com sua esposa Charlotte Berend-Corinth e uma taça de sekt (espumante alemão)1902Óleo sobre tela98.5 × 108.5 cm Coleção privada

Corinth coloca a si mesmo e sua companheira em um mesmo plano, negociando suas respectivas subjetividades em um ato de comunhão e reinvenção mútua. A obra rompe com a objetificação tradicional do feminino, elevando a figura da esposa a uma condição de agente, quase uma coautora da composição. A cena revela muito sobre as dinâmicas de gênero e a ressignificação dos papéis sociais. O artista e sua companheira se colocam em um espaço de igualdade, desafiando as convenções burguesas da época.


Tratando-se da própria esposa do artista, e não de uma modelo anônima, a representação adquire uma dimensão muito mais pessoal e intimista. O enquadramento aproximado e a centralidade dos corpos criam uma sensação de imersão e proximidade. O gesto de abraço é sugestivo, unindo os amantes em um ato de proteção mútua. A obra de Corinth transborda uma profunda sensação de intimidade e conexão entre o artista e sua esposa. A tela não é apenas um registro visual, mas uma narrativa sobre a ressignificação das identidades.


Portanto, a interpretação desta obra deve considerar seu caráter profundamente pessoal e a maneira como Corinth negocia as identidades do casal, em vez de reduzir a representação a uma simples objetificação. A comunhão e a intimidade entre os dois se sobrepõem à possível leitura de objetificação, tornando a obra um retrato complexo das transformações nas relações de gênero durante o período.



Autor desconhecidoUm Sátiro e uma Ménade em abraço íntimo30 AC-DC 79AfrescoRoman, Pompeii, House of Lucius Caecilius lucundus Museo Archeologico Nazionale di Napoli

As Ménades eram sacerdotisas do culto a Dionísio, o deus grego do vinho, da embriaguez e da fertilidade. Elas eram conhecidas por seus ritos extáticos, com danças frenéticas e estados de transe místico. O estado de arrebatamento místico das Ménades as levava a transgredir os limites do corpo físico, alcançando uma conexão com forças cósmicas superiores.


O seio feminino era associado à capacidade de nutrir e gerar vida, conectando-se aos temas dionisíacos de fecundidade e renascimento. O seio descoberto representa a expressão desinibida da sexualidade e dos desejos, em oposição às normas de pudor e recato.A representação desses personagens míticos, associados à fertilidade, hedonismo e transcendência, nos remete a uma visão mais fluida e menos rígida das normas sociais e sexuais vigentes.


A obra nos revela aspectos das crenças, valores e práticas culturais daquela sociedade, em que o culto dionisíaco desempenhava um papel importante como forma de expressão da espontaneidade, sensualidade e conexão com forças naturais.

© 2018 Musée du Louvre, Dist. GrandPalaisRmn / Christophe Fouin


Regnault, Jean BaptisteA origem da escultura, ou Pigmalião apaixonado por sua estátua1785Óleo sobre tela120 x 140 cmMusée du Louvre

Pigmalião não é apenas um escultor, mas um amante metafísico que projeta sua subjetividade mais íntima no mármore. Sua figura representa o arquétipo do artista que busca superar os limites da materialidade, transformando o inanimado em expressão de vida e sentimento.


O mito de Pigmalião funciona como um potente dispositivo de compreensão das relações humanas com objetos simbólicos. A escultura que ganha vida representa o desejo fundamental de animação, presente em múltiplas culturas - do golem judaico aos autômatos renascentistas - onde o humano busca transcender os limites da criação inanimada.


Pigmalião não deseja apenas uma mulher, mas a materialização perfeita de seu ideal estético e emocional. A obra de Regnault captura esse momento liminar com notável sensibilidade: o instante em que a estatuária de mármore parece respirar, em que o artificial se transmuta em orgânico, revelando o potencial transformador da arte como experiência transcendental.

© Galleria Nazionale d'Arte Antica /Palazzo Barberini 


GuercinoAlegoria da Pintura e Escultura1637Óleo sobre tela114 x 139 cmRoma, Galleria Nazionale d'Arte Antica

O Paragone (do italiano "comparação") é um conceito fundamental no debate artístico do Renascimento e início do período Barroco, iniciado por Leonardo da Vinci e desenvolvido por diversos teóricos e artistas. Essencialmente, tratava-se de uma discussão filosófica e estética sobre qual arte possuía maior nobreza e capacidade representacional: pintura ou escultura.


A Alegoria da Pintura e Escultura de Guercino não é apenas uma representação pictórica, mas um campo de batalha epistemológico onde as artes disputam sua supremacia representacional. Não se trata de reproduzir o real, mas de problematizar os próprios mecanismos de produção do visível. A representação que se reconhece como artifício não busca o ilusionismo, mas consciência dos próprios mecanismos de construção visual. Guercino não resolve o Paragone, mas o transforma em campo de experimentação. Pintura e Escultura não competem, dialogam. 


© Museu Arqueológico Nacional de Nápoles


Autor desconhecidoAres (Marte) e Afrodite (Vênus) 62-79 ADAfrescoCasa de Meleagro, PompéiaMuseu Arqueológico Nacional de Nápoles

A relação entre Ares e Afrodite problematiza conceitos de fidelidade, desejo e poder. Mesmo sendo Afrodite casada com Hefesto, sua relação com Ares representa uma ruptura dos códigos sociais estabelecidos, uma transgressão que encontra no universo mítico sua legitimação simbólica.


O toque no seio não é casual - representa uma tomada simbólica de posse, uma negociação física e metafísica de intimidade. Marte, deus da guerra, penetra o domínio de Afrodite não apenas fisicamente, mas como uma metaphorica conquista. Seu gesto sugere simultaneamente desejo e dominação, amor e violência - características intrínsecas à própria mitologia greco-romana. O toque íntimo materializa a tensão entre dois princípios fundamentais: a força masculina (representada por Ares/Marte) e a sedução feminina (corporificada por Afrodite/Vênus).


A genealogia de Marte/Ares proposta por Diodoro Sículo e Higino oferece uma perspectiva "terrena" e historicizada, Marte foi Belo, um rei da Babilônia, inventor de armas e habilidoso com os exércitos nos campos de batalha. Higino declara que este rei chamado Belo, por ter sido o primeiro a usar dardos (belos) como arma de guerra. Do Grego: "Belos" (βέλος/belos) = PROJÉTIL. Também, "Bélico" = relacionado à guerra, não relacionado primariamente a "beleza". A similitude com "belo" é coincidência fonética, não etimológica.

© GrandPalaisRmn / Benoît Touchard


Fragonard Jean-HonoréCéphale et Procris175579 x 173,5 cmAngers, musée des Beaux-Arts

O quadro configura-se como uma sofisticada alegoria onde o guerreiro (representando a força marcial) e a figura feminina (simbolizando a paz) estabelecem um diálogo corporal carregado de significações profundas. A proximidade física dos corpos traduz uma negociação constante entre violência potencial e possibilidade de pacificação.


O ramo de oliveira oferecido pela figura feminina não é um mero detalhe decorativo, mas um símbolo fundamental, tradicionalmente associado à paz, representa a oferta de reconciliação, a possibilidade de suspensão da violência através do diálogo e da compreensão mútua. O soldado romano, em sua plenitude muscular e armadura, representa a potência bélica - seu corpo em postura de ação, com espada em riste e escudo erguido, sugere a iminência do conflito. Contrapontualmente, a figura feminina - emerge como uma força de mediação e brandura.


Produzida , no auge do Iluminismo, a obra dialoga com os ideais de racionalidade e equilíbrio característicos do período. O toque gentil da figura feminina no cabo da espada é particularmente significativo - sugere não uma tentativa de desarmamento, mas uma comunicação íntima com o instrumento de guerra, como se estabelecesse um diálogo com a própria potencialidade destrutiva. Como o gesto, o olhar e o toque podem ser instrumentos de transformação mais poderosos que qualquer espada.

© Kunsthistorisches Museum Wien, Gemäldegalerie


Benigne GagnerauxPsique sendo despertada por Cupido1790Óleo sobre tela116 × 147,5 cmSala Pompeiana, Palazzo Altieri, Rome

A pintura captura o momento em que Cupido, com amor e ternura, prepara-se para despertar Psique, apontando sua flecha em direção ao coração dela. O mito de Eros e Psique, magistralmente narrado por Apuleio, configura-se como um dos mais sofisticados dispositivos alegóricos sobre a natureza do amor, desejo e conhecimento na tradição ocidental.


Psique, uma princesa de beleza extraordinária que desperta ciúmes de Afrodite, vive uma história de amor complexa com Eros (Cupido). Inicialmente sem pretendentes devido à sua beleza intimidadora, um oráculo prevê seu casamento com um monstro. Esse "monstro" é, na verdade Eros, que a visita secretamente durante a noite, sempre na escuridão. Instruído por sua mãe Afrodite para frustrar o romance de Psique, Eros acidentalmente se fere com sua própria flecha de amor.


Instigada pelas irmãs, Psique tenta ver o rosto de Eros no escuro, quebrando o pacto de confiança. Eros, magoado com a desconfiança, foge, declarando que "o amor não pode habitar com suspeitas". Psique então enfrenta uma série de provações impostas por Afrodite para recuperar seu amado. Na última tarefa, ao recuperar um frasco de Prosérpina, cai em sono mortal. Eros, cansado de esperar, a encontra e a desperta com sua flecha. Finalmente, Psique e Eros se unem em um casamento imortal, simbolizando o triunfo do amor sobre as adversidades.

© Russell-Cotes Art Gallery and Museum/Bournemouth, UK


Dante Gabriel RossettiVenus VerticordiaÓleo sobre tela98,1 × 69,9 cmRussell-Cotes Art Gallery and Museum

Rossetti cria uma Vênus que não apenas provoca, mas convida à reflexão sobre os mecanismos mais íntimos de constituição do sujeito desejante. Vênus emerge não como uma divindade distante, mas como uma força imanente de transformação subjetiva. A flecha direcionada ao próprio peito simboliza a capacidade de autorreflexão e poder de metamorfose - não apenas como instrumento de sedução, mas como potência de ressignificação existencial.


Inserida no movimento Pré-Rafaelita, a obra dialoga criticamente com as convenções vitorianas sobre sexualidade, representando o feminino não como entidade submissa, mas como força política e existencial. A pintura funciona como um sofisticado texto sobre os mecanismos de sedução e poder. Vênus não seduz, mas revela os dispositivos mesmos da sedução - tornando-se simultaneamente sujeito e objeto de seu próprio artifício.




Pierre-Maximilien Delafontaine (atribuído)Vênus e Cupido1860Óleo sobre tela124 x 51 cmColeção particular

Cupido, ou Eros em sua denominação grega, é o deus do amor, da atração e do desejo sexual. Ele é frequentemente retratado como uma criança ou um jovem alado, portando sua famosa flecha que provoca o amor involuntário em quem é atingido. Ao retratar Cupido/Eros como um menino, o artista evoca essa faceta do amor como algo instintivo, incontrolável e até mesmo perigoso.


Já Vênus, a deusa do amor, beleza e sexualidade, é a contraparte romana de Afrodite, a divindade grega. Vênus/Afrodite simboliza um amor mais refinado, estetizado e transformador. Ela é vista como a encarnação do amor em sua forma mais sublime e poderosa. Nesta obra, a justaposição entre Cupido e Vênus revela uma complexa dinâmica entre as diferentes manifestações do fenômeno amoroso. 


O corpo de Vênus comunica sua força e domínio sobre a situação. Mas seu gesto é ambíguo, parecendo tanto advertir quanto atrair o olhar do filho fascinado pelo objeto. A pose do menino Cupido, com os braços erguidos em direção à flecha, transmite sua fascinação e submissão à figura maternal. A obra permite uma leitura multifacetada, explorando as camadas simbólicas da relação entre Vênus e Cupido, assim como as tensões entre divindade e humanidade, poder e vulnerabilidade.

©  Galleria Borghese


Jacopo ZucchiCipdo e Pisiquê 1589Óleo sobre tela173 x 130 cmGalleria Borghese

Essa obra representa com maestria o tenso momento em que Psique, movida pela curiosidade e incitada pelas irmãs invejosas, decide revelar a identidade do seu amante misterioso, Cupido. 


Psique, com sua beleza esplendorosa e sua pose desafiadora, assume uma posição de poder sobre o deus do amor, subvertendo a tradicional narrativa de gênero em que Cupido exerce seu domínio sobre a mortal. Essa representação inovadora reflete as mudanças socioculturais em curso no Maneirismo e no início do Barroco, quando artistas começaram a questionar os dogmas e as estruturas de poder estabelecidas. 


Ao colocar Psique nessa posição de empoderamento, Zucchi parece sugerir uma visão mais complexa e emancipada da agência feminina, em contraste com a vulnerabilidade e a submissão tradicionalmente associadas à figura da mulher. Esse embate entre os gêneros masculino e feminino é evidenciado pelos atributos que cada um empunha - a adaga de Psique como símbolo de seu poder de agência, em oposição à passividade e fragilidade de Cupido.

© Ashmolean Museum, University of Oxford (image)

Giovanni Francesco Romanelli Angelica encontrando o Medoro ferido 1646Óleo sobre tela61,6 x 76,3 cmAshmolean Museum Oxford

A pintura representa um episódio do poema épico Orlando Furioso de Ludovico Ariosto (canto XIX, verso 17–42), publicado em 1516. Gravemente ferido em batalha, o cavaleiro sarraceno Medoro é auxiliado por Angélica,  uma princesa asiática, por quem Orlando, o herói do poema de cavalaria, está apaixonado. Inicialmente, Angélica cuida dos ferimentos de Medoro com um espírito de piedade, no entanto, com o tempo, isso se transforma em romance. 


A presença de Cupido, acompanhado de um putto, simboliza o amor emergente entre Angélica e Medoro, enquanto Cupido aguarda, com uma flecha em punho, pronta para ser disparada em direção a Angélica. Este objeto penetrante não é apenas uma arma de amor, mas carrega um subtexto fálico, evocando a dinâmica de desejo e posse que permeia a narrativa. Na iconografia, a flecha é frequentemente associada à virilidade e ao poder de sedução, refletindo as tensões psíquicas entre o amor idealizado e a realidade do desejo. No poema, Ariosto retrata a impaciência de Cupido, que, irritado pelo desdém de Angélica, aguarda ao lado de Medoro, enfatizando a interseção entre amor e agressão, onde a flecha simboliza tanto a conquista quanto a vulnerabilidade emocional que o amor pode instigar.


A pintura exibe o refinamento compositivo e a rica paleta de cores característicos do estilo barroco de Romanelli. A cena mais popular na arte é a dos amantes esculpindo seus nomes em uma árvore em um cenário silvestre; na maioria das vezes, Angélica é mostrada fazendo a escultura. É quando o herói Orlando, que está apaixonado por Angélica, encontra os nomes que ele fica furioso ou louco.

© GrandPalaisRmn / Benoît Touchard


Fragonard Jean-HonoréCéphale et Procris175579 x 173,5 cmAngers, musée des Beaux-Arts

Céfalo era um jovem príncipe de Atenas, conhecido por sua beleza extraordinária e favorito de Eos (Aurora), a deusa do amanhecer. Apesar do assédio de Eos, Céfalo era apaixonadamente devotado à sua esposa Procris. A trama trágica se desenvolve a partir de um momento de desconfiança. Nem Céfalo nem Procris tinham realmente sido infiéis, mas o veneno da suspeita os destruiu.


O ponto de virada dramático ocorre quando Procris, tomada pela suspeita, segue Céfalo secretamente quando ele vai caçar na floresta. Eos, frustrada por não conseguir seduzir Céfalo, sussurra a ele insinuações sobre a possível infidelidade de Procris. Simultaneamente, Procris, atormentada por rumores sobre a sedução de Céfalo por Eos, começa a duvidar da fidelidade do marido. 


Procris é acidentalmente atingida por uma flecha lançada por Céfalo durante a caça. O dardo era especial - presenteado por Artemis, era infalível e sempre atingiria seu alvo. Céfalo não sabia que era sua esposa que estava escondida entre os arbustos e, ao atingi-la mortalmente, descobre o terrível equívoco.

© Kunsthistorisches Museum Wien, Gemäldegalerie

Anônimo, Niccolò dell' Abate (?) Céfalo e PrócrisC. 1550Lona127 × 102,5 cmKunsthistorisches Museum Wien, Gemäldegalerie


Gian Lorenzo BerniniO Êxtase de Santa Teresa1647-1652Grupo escultórico em mármoreIgreja de Santa Maria della Vittoria, Roma

A arte barroca, especialmente a de Bernini, foi influenciada pela cultura clássica, que apresentava deuses e deusas personificando emoções humanas, como o amor. Elementos pagãos nas representações cristãs refletem um sincretismo que combina diferentes tradições. Algumas imagens de Maria e Jesus evocam figuras mitológicas, como Vênus e Cupido, tornando o sagrado mais acessível e ressonante.

A expressão de Santa Teresa, com olhos semicerrados e boca entreaberta, transita entre êxtase religioso e prazer sensual. O legado da obra é multifacetado: tecnicamente, estabeleceu novos padrões em mármore; conceptualmente, ampliou as representações da experiência religiosa; culturalmente, exemplifica a complexa relação entre sensualidade e espiritualidade na arte ocidental.

No contexto da Contra-Reforma, a obra atende a um propósito político-religioso. A Igreja Católica, em resposta ao ascetismo protestante, adotou uma estética que enfatizava a experiência sensorial como caminho para a transcendência espiritual. A obra de Bernini exemplifica essa estratégia, evocando uma profunda resposta emocional nos fiéis.

Para elaborar a representação de Santa Teresa de Ávila, Bernini se baseou na descrição de sua autobiografia, Livro da Vida:


"Um dia apareceu-me um anjo com uma beleza nunca vista. Eu vi na sua mão uma longa lança de ouro cuja ponta parecia ser de fogo. Ela parecia penetrar várias vezes no meu coração e perfurar as minhas entranhas. A dor era tão grande que me fez gemer em alta voz, mas superava a doçura desta dor excessiva, e eu não pude querer livrar-me dela. Nenhuma felicidade terrestre pode dar um prazer assim tão grande. Quando o anjo tirou a lança, senti um enorme amor por Deus."



Peter Paul RubensSão Sebastião cuidado por dois anjosC. 1604 Óleo sobre tela 124 x 97,8 cm Coleção particular

O corpo musculoso, desnudado e atravessado por flechas, se encontra suspenso entre a dor física e a transcendência espiritual. As flechas tornam-se protagonistas simbólicas, representando simultaneamente o sofrimento terreno e a penetração divina, uma metáfora de martírio espiritual. O toque dos anjos, com suas expressões de ternura e cuidado, introduz uma dualidade emocional. Eles não apenas cuidam das feridas, mas também exaltam a sacralidade do momento, transformando o sofrimento em algo sublime. Esta dinâmica dramatiza a dicotomia barroca entre o humano e o divino, o físico e o metafísico, realçando a capacidade da arte de Rubens de evocar empatia e introspecção.


O corpo masculino de São Sebastião, altamente idealizado, ultrapassa a representação de um mártir cristão para adentrar o território de um arquétipo universal de beleza e virilidade. A proximidade física, a suavidade dos gestos e a atenção dedicada ao corpo ferido do santo criam uma atmosfera de intimidade. Antropologicamente, a cena evoca um rito de cuidado e reverência que transcende o meramente espiritual, conectando-se a leituras modernas que percebem em São Sebastião um ícone LGBTQ+, especialmente pela forma como a arte codifica seu corpo e sofrimento como objetos de desejo e devoção.


A dualidade entre sofrimento e transcendência ressoa com a experiência histórica de marginalização e empoderamento. A obra de Rubens, ao capturar essa ambiguidade entre o carnal e o divino, contribui para perpetuar a relevância de São Sebastião como uma figura que transcende o contexto cristão, se tornando um ícone universal de humanidade. Antropologicamente, a transformação de Sebastião em ícone LGBTQ+ reflete como os símbolos religiosos podem ser apropriados por comunidades para expressar narrativas alternativas.

© The National Gallery, London

Agnolo BronzinoUma Alegoria com Vênus e Cupido ArtistaC. 1545óleo sobre madeira146,1 × 116,2 cmThe National Gallery, London

Nesta obra paradigmática do Maneirismo, o erotismo não se constitui como mera representação sensual, mas como um dispositivo hermenêutico que desestabiliza fronteiras convencionais de interpretação. O encontro corporal entre Vênus e Cupido transcende a relação materno-filial, instituindo uma zona de ambiguidade onde o incesto e a sedução se entrelaçam numa coreografia de gestos calculados. Cupido, ao apertar o mamilo de Vênus e beijá-la nos lábios, produz uma cena que desafia os códigos normativos de representação. Seu corpo, provocativamente exposto, com nádegas nuas empurradas para fora, torna-se um significante de transgressão, onde a inocência infantil se dissolve numa performatividade sofisticada.


A artificialidade dos corpos - "esmaltados", como diria o próprio Bronzino - não busca naturalismo, mas antes estabelecer uma materialidade conceptual. Cada músculo, cada dobra de pele é trabalhada como se fosse esculpida em mármore, criando uma superfície que é simultaneamente táctil e intelectual. Os corpos são alegorias de si mesmos, signos de uma elaboração estética que recusa a mimese renascentista em favor de um jogo de simulacros.


As máscaras aos pés de Vênus não são apenas elementos decorativos, mas metáforas fundamentais: sugerem que a luxúria opera por meio do engano, que o desejo é sempre uma performance onde máscaras são continuamente rearranjadas.

© The Uffizi

Agnolo BronzinoSagrada Família com o jovem São João (Madonna Panciatichi)1503-1572Óleo sobre madeira Tamanho116,9 x 89,7 cmThe Uffizi

Na Sagrada Família de Bronzino, o toque corporal de João Batista sobre Jesus institui um campo de significações que transcende a aparente simplicidade da cena devocional. O gesto não é apenas um ato de ternura infantil, mas uma sofisticada construção simbólica onde a intimidade física se transmuta em premonição trágica.


Os corpos das duas crianças são trabalhados com uma artificialidade típica do Maneirismo - não são corpos naturais, mas corpos conceituais, quase escultóricos - a carne tem a luminosidade do alabastro.


A corporalidade em Bronzino nunca é inocente. O toque entre João e Jesus não é apenas um gesto de afeto, mas um campo de forças onde o divino, o histórico e o trágico se interceptam. A obra problematiza os próprios limites da representação sacra, transformando a Sagrada Família num dispositivo onde a corporalidade se torna texto, onde o gesto corporal é mais eloquente que qualquer narrativa verbal.

©  The Fitzwilliam Museum, Cambridge


TicianoTarquínio e Lucrécia1571Óleo sobre tela188,9 × 145,1 cmMuseu Fitzwilliam , Cambridge

Uma beguina não eram freiras propriamente ditas, mas mantinham uma vida semi-monástica, com regras e estruturas próprias, mas sem pertencer a uma ordem religiosa formal. A cena retratada, com o monge apalpando o peito da beguina para verificar sua suposta gravidez, é claramente uma abordagem irreverente e provocativa. O fato de brotar vinho em vez de leite sugere uma zombaria da piedade e da moralidade religiosa, evidenciando uma visão cética em relação às práticas e aos valores da Igreja Católica da época.


Cornelis van Haarlem, de fato, parece ter abordado o tema de maneira irônica e crítica, possivelmente fazendo uma sátira da vida monástica católica. Esse tipo de representação satírica é particularmente interessante quando consideramos o contexto histórico do maneirismo e do Barroco, períodos em que muitos artistas começaram a questionar e criticar as estruturas de poder e as instituições religiosas dominantes.

©  The Fitzwilliam Museum, Cambridge


TicianoTarquínio e Lucrécia1571Óleo sobre tela188,9 × 145,1 cmMuseu Fitzwilliam , Cambridge

Tarquínio, o Último Rei de Roma, que, segundo a lenda, violou Lucrécia, uma mulher de virtude exemplar. Este evento não só provocou a sua morte, mas também levou à queda da monarquia e à formação da República Romana. Assim, a pintura se insere em um contexto histórico de transição, onde os valores morais e éticos estavam sendo reavaliados.


A adaga que ele segura não é apenas uma arma, mas um símbolo da dominação. Ele ameaça Lucrécia mas também representa um sistema de valores que legitima a opressão e a violência como expressões da masculinidade. A pintura de Lucrécia não apenas refletia a dor de uma mulher em uma sociedade patriarcal, mas também provocava discussões sobre a violência de gênero. 


Durante o Renascimento, a figura de Lucrécia tornou-se um símbolo poderoso da virtude feminina e da tragédia associada ao estupro. A narrativa de Lucrécia, que culmina em seu suicídio, era uma forma de discutir questões de honra e moralidade, especialmente em um contexto onde a reputação das mulheres era frequentemente atrelada à sua pureza sexual.

Creative Commons Zero (CC0).


Eustache Le SueurO estupro de TamarC. 1640Óleo sobre tela189,2 x 161,3 cmThe Metropolitan Museum of Art

O "Estupro de Tamar" de Eustache Le Sueur é uma poderosa representação de uma cena bíblica carregada de violência e conflito. Apesar das características formais clássicas que temperam a composição, a obra é profundamente patética, explorando as consequências emocionais e éticas deste ato terrível. A narrativa é construída de forma sóbria e dramática, com gestos contidos que remetem à escultura clássica, como observado por Le Brun em suas teorias sobre a representação da história. Essa abordagem formal cria um efeito de quadro congelado, intensificando o senso de tensão e a iminência do ato violento.


Ao situar a obra no contexto da ascensão da Academia Real Francesa, podemos também entender o "Estupro de Tamar" como uma afirmação do status intelectual e social dos artistas, que buscavam elevar a pintura a um nível de prestígio e relevância moral comparável à escultura clássica. Nesse sentido, a obra de Le Sueur se configura como um exemplo dessa ambição.


Tamar era a filha do rei Davi e a irmã de Absalão. Seu meio-irmão Amnon se apaixonou por ela e, fingindo estar doente, conseguiu ficar a sós com Tamar em sua casa. Então ele a forçou e a estuprou. Absalão, irmão de Tamar, mandou matar Amnon. O texto bíblico enfatiza o sofrimento de Tamar e a necessidade de justiça, mesmo que essa tenha sido alcançada de maneira trágica e irregular. O episódio reflete temas como o abuso de poder, a desonra familiar e a complexidade das relações humanas.

© Tate


William HogarthSatanás, pecado e morte (uma cena do 'Paraíso perdido' de Milton)c.1735–40Óleo sobre tela 61,9 x 74,5 cmTate

A figura central, o Pecado, é retratada de forma majestosa e angustiante, com seu corpo nu e contorcido, revelando sua natureza ambígua e perturbadora. A obra reflete uma visão patriarcal e misógina da época, na qual o feminino é associado ao pecado, à tentação e à degradação moral. A figura do Pecado, apresentada como a filha incestuosa de Satanás e da Morte, encarna essa perspectiva conservadora sobre a natureza da mulher.


A arma de Satanás, com sua ponta brilhante e afiada, pode ser interpretada como símbolo fálico, reforçando a noção do poder e da dominação masculina. A associação de Satanás com a figura de Marte/Ares, o deus grego da guerra, é uma leitura plausível considerando alguns dos atributos visuais da personagem, como sua postura imponente e suas vestimentas de guerreiro romano. Hogarth parece se apropriar desses repertórios simbólicos e iconográficos para construir uma narrativa visual própria, enriquecida por essa multiplicidade de referências.


A leitura da figura de Satanás como uma espécie de síntese entre o Marte/Ares clássico e a representação cristã do demônio nos revela a riqueza interpretativa da obra de Hogarth, que transita habilmente entre diferentes tradições culturais em sua abordagem do texto de John Milton. Essa interseção de referências é fundamental para compreendermos a complexidade estética e simbólica deste trabalho.




Franz von StuckPerseu com a cabeça da Medusa1908 Óleo sobre tela 72 x 83 cmFondazione Musei Civici di VeneziaCa' Pesaro - Galleria Internazionale d'Arte Moderna

A pintura de Stuck oferece uma metalinguagem rica sobre a natureza da arte e da representação. A espada em primeiro plano funciona como um símile da habilidade do artista em "petrificar" o movimento, transformando a fluidez da vida em uma imagem estática e poderosa. A queda da espada pode ser vista como um símbolo fálico, mas sua posição sugere uma fragilidade nas construções de poder associadas ao masculino. A composição é dinâmica e expressiva, com os corpos nus das figuras retorcidos em movimentos vigorosos.


Ao derrotar a Medusa, Perseu não apenas comete um ato de heroísmo, mas também utiliza o poder feminino de maneira estratégica. A capacidade da Medusa de petrificar os homens que a encaram diretamente sugere um poder que transcende a morte física. Sua cabeça decapitada torna-se um artefato de poder, usado por Perseu como uma arma, perpetuando a aura de Medusa como símbolo de terror e força. Mesmo após sua morte, a cabeça da Medusa mantém a magia de petrificação, e Perseu a utiliza para punir seus inimigos, como Polidectes e os pretendentes de sua mãe, Dânae.


O olhar masculino, que normalmente é objetificador, transforma-se em pavor e medo diante da ameaça de se tornar um ser inanimado, uma estátua — e, portanto, um objeto. Isso indica que a cultura do olhar vai além da mera percepção estética; ela envolve também questões de controle e dominação, desafiando as normas de poder e revelando as complexidades das relações de gênero.

©  Birmingham Museum of Art



Georges MerleA Feiticeira1883Óleo sobre tela115 x 146 cmBirmingham Museum of Art

Os objetos rituais dispostos na cena - a boneca vodu, o pentagrama no chão, o crânio e a vela - formam um vocabulário visual que mistura diferentes tradições esotéricas, revelando como o ocidente do século XIX apropriava e ressignificava elementos culturais diversos. Esta mistura reflete o sincretismo característico do esoterismo europeu do período, que bebia de fontes orientais, africanas e da própria tradição hermética ocidental.


A agulha, em muitas culturas, carrega uma dualidade simbólica interessante: é tanto instrumento de cura (na acupuntura, por exemplo) quanto de agressão. No contexto desta obra, essa dualidade sugere não apenas vingança ou agressão, mas possivelmente um ato de "cura social" - uma tentativa de reequilíbrio de poder através do ritual.


É notável que o boneco masculino está prostrado no chão, em posição de submissão, enquanto a feiticeira ocupa uma posição elevada e dominante. O uso de agulhas também evoca associações com trabalhos tradicionalmente femininos como costura e bordado, mas aqui estes instrumentos são ressignificados como ferramentas de poder e transformação. 


A figura da feiticeira pode ser lida como uma metáfora do poder feminino emergente, que desafiava as estruturas patriarcais estabelecidas. O conhecimento esotérico, historicamente, ofereceu às mulheres uma via de poder e autonomia em sociedades que lhes negavam autoridade formal. A figura da feiticeira, historicamente demonizada e perseguida, é aqui apresentada com dignidade e poder, embora através de uma lente orientalista característica do período.

©  David LaChapelle


David LaChapelleLIL KIM2000Fotografia58 x 48.5 cm

Do ponto de vista psicanalítico, a obra evoca o conceito freudiano do "uncanny" (inquietante) - algo familiar que se torna perturbador. A estética de boneca, com sua artificialidade exagerada, cria um desconforto proposital que nos faz questionar nossas próprias percepções sobre autenticidade e identidade. 


A expressão facial com a boca aberta simultaneamente evoca e subverte os códigos visuais da sexualização feminina na mídia. A obra subverte e critica os padrões eurocêntricos de beleza através da apropriação deliberada de elementos tradicionalmente associados a estes padrões (cabelo loiro, olhos azuis) em uma modelo negra. Esta justaposição cria uma tensão visual que questiona os ideais de beleza impostos pela sociedade e como estes afetam especialmente as mulheres negras.


LaChapelle utiliza a linguagem do excesso e do artifício - características marcantes de seu trabalho - para criar uma crítica mordaz à mercantilização do corpo feminino negro e aos padrões de beleza impostos pela indústria cultural. LaChapelle consegue, através de sua estética característica, criar uma obra que funciona simultaneamente como crítica social e documento histórico de um período de transformação nas discussões sobre raça e identidade na cultura pop americana.

 © Jake & Dinos Chapman 

Jake and Dinos ChapmanDeath I2003Bronze73 x 219 x 95 cmColeção particular

Esta peça faz parte da produção dos irmãos Chapman, que são conhecidos por criarem obras provocativas e desconcertantes que abordam temas como violência, mortalidade e a natureza humana.Portanto, sem entrar em detalhes explícitos, podemos dizer que a obra possui uma dimensão conceitual forte, explorando temas complexos sobre a condição humana de uma forma provocativa e simbólica. A abordagem estilizada das figuras humanas, combinada com o material escultórico, cria uma interessante dinâmica entre o que é familiar e o que é perturbador. Essa tensão parece ser a principal chave de leitura desta obra. 


A escolha do material, o bronze, cria um interessante contraste com a aparência leve e quase brinquedesca das formas. Isso gera uma tensão entre o que é visto e o que é realmente experienciado fisicamente. A obra parece abordar temas complexos sobre a representação do corpo, a objetificação e a mortalidade.Essa tensão parece ser intencional e pode ser interpretada como uma crítica à objetificação do corpo e às relações humanas.

©   Photo Éric Simon


Jean Luc  MoulèneFemme - Le Buisson2020Cimento concreto, ferro e resinaGalerie Chantal Crousel

A escolha do concreto como material é significativa: um material industrial, frio, pesado, que transforma algo originalmente maleável e "descartável" em um objeto permanente e imponente. Esta transmutação material dialoga com o conceito do "Real" lacaniano - aquilo que resiste à simbolização - criando uma tensão entre o efêmero do objeto original e a permanência monumental da obra.


Esta obra pode ser vista como uma poderosa reflexão sobre como a sociedade contemporânea lida com questões de desejo, poder e objetificação, utilizando a linguagem da escultura para criar um comentário crítico sobre as estruturas sociais que moldam nossas relações com o corpo, o desejo e o poder.


A inversão espacial da figura, posicionada de cabeça para baixo, pode ser interpretada como uma desconstrução dos códigos estabelecidos de representação do corpo feminino. Esta subversão evoca o conceito de "carnavalização" de Bakhtin, onde a inversão da ordem estabelecida serve como ferramenta de crítica social.

©   Photo Éric Simon


Jean Luc  MoulèneFemme - Le Buisson2020Cimento concreto, ferro e resinaGalerie Chantal Crousel

A figura escultórica, em tons de rosa, possui uma anatomia simplificada e estilizada, com partes do corpo como genitais e seios pendurados, conectados por uma corrente dourada. Essa composição escultural desafia as noções convencionais de representação do corpo, misturando elementos realistas e fantásticos de uma maneira inquietante e subversiva. Essa máscara distante da humanidade sugere uma crítica aos processos de mascaramento e simulacros que permeiam a realidade contemporânea, marcada pela virtualidade e a proliferação de imagens sintéticas.


Ao mesmo tempo, a presença da escultura em tamanho real implica numa dinâmica de interação com o espectador, convidando-o a confrontar-se com essa representação fragmentada e sexualizada do corpo. Essa tensão entre o real e o fantástico, o familiar e o estranho, evoca questões profundas sobre a expressão da sexualidade, a objetificação do corpo e as camadas de mediação que envolvem a percepção da realidade.


Inserida em um contexto contemórâneo a obra flerta com narrativas surrealistas, abordagens abstratas e performativas do corpo. A escultura busca revelar as contradições e ambiguidades da experiência humana no mundo atual e convida o público a refletir sobre as complexas interseções entre sexualidade, representação, estética e a própria condição humana diante das transformações socioculturais em curso.

©  Jeff Koons


Jeff KoonsGarota com golfinho e macaco2006Impressão de arquivo de cristal cromogênico69.2 × 101 cmColeção particular
©  Photo: Marc Domage


Paul McCarthy‘Tree’2014Escultura insuflável, tecido de nylon revestido em vinil, ventiladoresPlace Vendôme, FIAC Hors les Murs, Paris, France