Uiara rara predadora presa | 2024

Detalhes / OBRA DE ARTE


Título: Uiara Rara Predadora Presa

Criador: Alexandre Mury

Data de criação: 2016-2024

Tipo: Instalação

Meio: Escultura


Período da Arte: Contemporâneo

Movimento/Estilo: Arte Conceitual, Apropriação Cultural, Releitura, Escultura, Arte Instalativa

Assunto: sereia, petróleo, plástico, folclore, mitologia, ecologia

Obras Relacionadas: uiara, sereia

Artistas Relacionados: 



  Palavras-chave

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Procedência: Alexandre Mury Coleção Particular / Acervo Pessoal  de Obras de Arte
Direitos: © Alexandre Mury
Foto: Leonardo Vasconcelos

Alexandre MuryUiara rara predadora presa2016-2024Escultura e instalaçãoExposição: Ribeirar (curadoria: Marcelo Campos e Raquel Fernandes)Galeria Estação, SESC Grussaí, São João da Barra, RJ
Foto: Leonardo Vasconcelos

Alexandre MuryUiara rara predadora presa (detalhe)2016-2024Escultura e instalaçãoExposição: Ribeirar (curadoria: Marcelo Campos e Raquel Fernandes)Galeria Estação, SESC Grussaí, São João da Barra, RJ

Na obra de Mury, a figura da sereia pode ser vista como um duplo: um “manequim” (na perspectiva teórica de Tadeusz Kantor) onde a escultura não é apenas uma representação estática, mas um elemento teatral que prolonga a narrativa da sereia para além de sua forma tradicional, inserindo-a em um novo contexto de crítica ambiental e cultural. Como no teatro de Kantor, onde os manequins servem como extensões dos atores, a sereia de Mury estende a narrativa mitológica para incluir comentários sobre poluição, degradação ambiental e a relação destrutiva do ser humano com a natureza.


A obra de Mury é altamente cênica e sensorial, evocando uma forte presença visual e emocional. A sereia, pendurada de cabeça para baixo e coberta por resíduos plásticos, cria uma cena perturbadora que provoca uma reação visceral no espectador. Assim como os manequins de Kantor, que eram marcados pelo “selo da Morte” e sugeriam uma consciência superior, a sereia de Mury, desprovida de feições faciais e em um estado de sofrimento, sugere uma existência que transcende sua forma física. Esta presença quase sobrenatural evoca uma sensação de desconforto e reflexão, características essenciais do teatro da morte de Kantor. 

"A morte (ou a sua alusão) torna os homens delicados e patéticos. Estes comovem-se pela sua condição de fantasmas. Cada ato que executam pode ser o último. Não há um rosto que não esteja por se desfigurar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perdido. Entre os Imortais, pelo contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o claro presságio de outros que, no futuro, o repetirão até à vertigem. Não há coisa que não esteja perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é primorosamente gratuito. O elegíaco, o grave, o cerimonial, não contam para os Imortais. Homero e eu separamo-nos nas portas de Tânger. Creio que não nos despedimos."

Jorge Luís Borges, O Imortal


A representação da sereia morta sublinha a irreversibilidade das ações humanas e a perda irrecuperável da beleza e do mistério. Cada imagem de degradação é um lembrete da singularidade e do valor de cada ato, como Borges descreve a condição mortal que confere importância a cada ação. A obra de Alexandre Mury, ao incorporar o tema da morte e da degradação, revela uma camada profunda de interpretação estética e filosófica. Através de suas representações, Mury oferece uma reflexão crítica sobre a fragilidade da existência e a urgência de preservar o meio ambiente e a cultura.

Coleção particular / acervo do artista

Alexandre MuryUiara rara predadora presa2019-2024Fotografia digital30 x 40 cmColeção particular

A percepção do folclore como algo arcaico e desconectado da vida contemporânea é completamente equivocada - o folclore é mal interpretado, como uma ameaça ao desenvolvimento ou simples entretenimento para as massas exploradas. 


Mury não busca apenas retratar ou preservar a cultura popular de maneira direta e documental. Sua intenção é mais complexa e subversiva: ele usa a cultura popular como ponto de partida para explorar temas filosóficos, estéticos e sociais mais profundos. Em vez de simplesmente documentar, ele reconstrói e reinterpreta elementos da cultura popular, conferindo-lhes novos significados.


Uma sereia, tradicionalmente símbolo de beleza e mistério, é retratada presa e atravessada por um anzol, exposta como carne em um açougue. A destruição do encanto e do mistério da sereia reflete a morte de crenças absolutas, substituídas por uma realidade brutal e material. Ao mascarar a imagética popular e enriquecer suas provocações interpretativas com referências filosóficas e literárias, Mury oferece uma crítica profunda e multifacetada da realidade contemporânea. 

Depoimento do Artista


O título "Uiara rara predadora presa" encapsula a essência da escultura, sugerindo uma narrativa rica e multifacetada que toca em questões de mitologia, cultura, crítica ambiental e representação artística. Ao explorar essas camadas de significado, o título não apenas introduz a obra, mas também convida o espectador a um diálogo profundo e reflexivo sobre as interações entre humanos e natureza, cultura e poder. O título também sugere uma crítica ambiental poderosa. A figura rara e predadora da Uiara, agora presa, pode ser vista como uma metáfora para as espécies ameaçadas pela ação humana. A obra sublinha a ideia de que, ao capturar e confinar a natureza, estamos destruindo algo precioso e insubstituível. A presença dos objetos de plástico na poça abaixo da escultura reforça essa mensagem, simbolizando a poluição e o impacto humano no meio ambiente. 


"Uiara rara predadora presa" é uma obra que emerge de uma profunda reflexão sobre as complexas interações entre a mitologia, a natureza e a intervenção humana. Ao criar esta escultura, me inspirei na riqueza do folclore brasileiro, especificamente na figura da sereia, um ser híbrido que transcende culturas e histórias ao redor do mundo. A Uiara, em particular, carrega um simbolismo poderoso dentro da tradição indígena brasileira, mas também ressoa com divindades aquáticas de outras mitologias, como Oxum e Iemanjá da cultura afro-brasileira, além de figuras similares na mitologia greco-romana.


Esta obra, parte da série "Iconofobia", não se limita a um resgate nostálgico das tradições folclóricas. Ao contrário, busca confrontar e desconstruir narrativas, lançando um olhar crítico sobre nossa relação com o meio ambiente. A sereia pendurada de cabeça para baixo, atravessada por um anzol, simboliza tanto a captura quanto o resgate. A ausência de feições faciais direciona a atenção para o corpo contorcido, destacando a desumanização e a perda de identidade. A exploração ambiental e a violência contra a natureza não são apenas responsabilidades de empresas e governos, mas também de indivíduos e pequenos gestos desprezados que resultam em consequências desastrosas.


A escultura, feita de papelão, madeira e metais reciclados, é revestida de tecido poliéster e resina que dá um efeito de brilho molhado. A sereia de cor inteiramente preta parece um animal acometido por um desastre ambiental. Abaixo dela, há uma poça negra como petróleo com diversos objetos de plástico, uma mistura intencionalmente heterogênea. Essa combinação evoca a ideia de lixo, remetendo ao descarte excessivo e ao impacto ambiental da atividade humana. O uso predominante do preto não apenas unifica esses materiais, mas também simboliza desastres ambientais, como derramamentos de petróleo, ampliando a crítica ao consumo desenfreado e à poluição.


A dimensão realista da escultura, com cerca de 2 metros de altura, provoca uma confusão sensorial que reforça a presença quase sobrenatural da figura. Essa escolha de escala dialoga com a tradição escultórica, onde a proporção realista era frequentemente evitada para não ser confundida com moldes de corpos reais, e visa criar um impacto visual e emocional profundo no espectador. Ao trabalhar com essa escala, a obra provoca a sensação de presença da sereia, tornando sua captura e sofrimento ainda mais palpáveis e imediatos. A escultura, ao evocar um ser mitológico com dimensões humanas, intensifica a conexão emocional, convidando o espectador a refletir sobre a vulnerabilidade e a fragilidade da vida frente às forças de destruição ambiental.


A série "Iconofobia" difere de uma iconoclastia simples. Ao invés de destruir ícones, procuro resgatar e recontextualizar a iconografia, oferecendo um olhar crítico sobre o pathos, o ethos e o logos da arte contemporânea. Esta abordagem permite uma reflexão mais ampla sobre as implicações sociais, culturais e ambientais da arte, promovendo um diálogo que transcende a mera representação estética. A ideia de iconofobia, ou o medo e a aversão a imagens, é reinterpretada na série como uma forma de questionar e desafiar as percepções visuais e simbólicas que carregamos. Em vez de rejeitar completamente as imagens do passado, a série busca integrar essas figuras em novos contextos que iluminam suas complexidades e relevâncias contemporâneas. O pathos, ou apelo emocional, é evocado pela presença quase real e dolorosa da sereia, capturando a empatia do espectador e destacando o impacto visceral da obra. O ethos, ou caráter moral, é refletido na crítica ambiental e social implícita na obra, que questiona a responsabilidade coletiva na destruição do meio ambiente. O logos, ou apelo lógico, é apresentado através da composição meticulosa e da integração de materiais reciclados, que racionalizam a mensagem crítica e a tornam acessível e compreensível.


Ao exibir "Uiara rara predadora presa", espero provocar discussões sobre apropriação cultural, consciência ambiental e as complexas narrativas associadas ao corpo feminino. Embora a figura da sereia não seja uma mulher, sua representação híbrida como metade mulher e metade peixe desafia percepções tradicionais e convida à introspecção sobre como tratamos tanto as lendas quanto o meio ambiente que inspirou essas histórias. Em uma era dominada pela cultura digital e pela produção massiva de personagens fictícios, a obra busca reafirmar a relevância e o poder das tradições orais e visuais, estimulando um diálogo crítico e sensível com o espectador. A representação da sereia, ao mesmo tempo, familiar e perturbadora, serve como um espelho das contradições e desafios que enfrentamos, tanto na preservação de nossa herança cultural quanto na proteção de nosso ambiente natural.

Escultura: "Uiara rara predadora presa", série "Iconofobia", 2016, Fotografia: 2019

"Criar uma imagem consiste em ir retirando do objeto todas as suas dimensões, uma a uma: o peso, o relevo, o perfume, a profundidade, o tempo, a continuidade, e, é claro, o sentido"

Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação

Jean Baudrillard aborda a ideia de que criar imagens envolve a abstração das dimensões tangíveis e sensoriais, resultando em simulacros. A sereia de Mury, ao ser representada de maneira desmaterializada e desprovida de suas características tradicionais, exemplifica a criação de simulacros que desafiam a percepção do real. A sereia sem feições faciais e coberta por resíduos plásticos torna-se um simulacro que desmaterializa a figura mítica, destacando a destruição ambiental.

Uiara

A escolha do nome "Uiara" imediatamente remete ao folclore brasileiro, especificamente à figura mítica da sereia amazônica. A Uiara, também conhecida como Iara, é uma entidade que habita rios e lagos, frequentemente associada a encantamentos e perigos. Ela é um símbolo de beleza e mistério, mas também de sedução e ameaça. A Uiara é muitas vezes retratada como uma predadora, capaz de atrair e capturar suas vítimas com seu canto hipnótico. Ao usar "Uiara" no título, o artista não só se conecta com uma rica tradição cultural, mas também sugere uma narrativa de poder e vulnerabilidade.

"Nós somos cidadãos de uma cultura mundializada - não no sentido de que habitamos um mundo partilhado, mas no sentido de que nossas vidas são habitadas pela presença de outras culturas, outras línguas, outras experiências."

Homi K. Bhabha, O Local da Cultura

Homi Bhabha fala sobre a globalização cultural, onde as vidas são influenciadas por diversas culturas e experiências. A obra de Mury reflete essa globalização ao combinar elementos mitológicos de várias culturas e confrontá-los com questões ambientais globais A sereia, como um ícone mitológico global, é apresentada em um contexto de poluição, refletindo a interconexão das crises ambientais e culturais.

Rara

O adjetivo "rara" sublinha a singularidade e a preciosidade da figura representada. A Uiara não é apenas uma predadora comum, mas uma entidade rara, talvez uma espécie em extinção ou uma figura que não se encontra facilmente. Isso pode ser interpretado como uma crítica à perda de biodiversidade e à destruição dos ecossistemas que abrigam tais criaturas míticas. A raridade da Uiara também pode refletir a raridade da própria obra de arte, uma peça única que encapsula um momento particular de inspiração e crítica. A criatividade popular, que alimenta e preserva essas histórias, enfrenta uma concorrência feroz de narrativas globais e tecnologicamente mediadas. A obra, portanto, também serve como um comentário sobre a importância de preservar e valorizar essas tradições culturais, que são tão preciosas e frágeis quanto os próprios ecossistemas naturais.

"Algumas pessoas argumentam que o “hibridismo” e o sincretismo – a fusão entre diferentes tradições culturais – são uma poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia que às velhas e contestadas identidades do passado."

Stuart HALL, A Identidade Cultural na Pós-Modernidade

Stuart Hall discute o hibridismo e o sincretismo como forças criativas que moldam novas formas de cultura na modernidade tardia, desafiando identidades tradicionais. A sereia de Mury incorpora elementos de várias tradições culturais, simbolizando a fusão de mitos antigos com preocupações contemporâneas. A presença de resíduos plásticos ao redor da sereia mistura narrativas mitológicas com críticas ambientais modernas, exemplificando a criação de novas formas culturais.

Predadora

A palavra "predadora" destaca o aspecto mais ameaçador e potente da Uiara. Ela é uma figura que caça, que tem uma força inerente e uma presença dominante. No contexto da escultura, isso pode ser visto como uma metáfora para a natureza impiedosa e implacável, que, apesar de sua beleza, tem um lado feroz e incontrolável. Esta dualidade ressoa com a mensagem ecológica da obra, sugerindo que a natureza, quando provocada ou desequilibrada, pode se tornar uma força predatória contra a humanidade.

"A representação é, na verdade, o próprio processo pelo qual a identidade cultural é construída e consolidada. O conhecimento é integrado de forma a produzir uma imagem geral estável das coisas, mas esse conhecimento é sempre condicionado a partir de um ponto de vista particular."  

Edward Said, Cultura e Imperialismo

Edward Said argumenta que a representação é um processo central na construção e consolidação da identidade cultural, sempre condicionada por perspectivas específicas. A obra de Mury utiliza a figura da sereia para criticar a maneira como identidades culturais e mitológicas são representadas e distorcidas por perspectivas dominantes. Ao apresentar a sereia em um estado de degradação, Mury questiona as narrativas culturais idealizadas e revela a influência destrutiva da intervenção humana na natureza.

Presa

Finalmente, o termo "presa" adiciona uma camada de contradição e complexidade ao título. A predadora, que normalmente seria a caçadora, é agora a capturada. Este paradoxo cria uma tensão narrativa central para a obra. A Uiara, suspensa de cabeça para baixo e atravessada por um anzol, simboliza a captura e o confinamento, uma inversão de sua posição natural de poder. Esta imagem sugere uma crítica à maneira como a humanidade aprisiona e destrói a natureza, revertendo os papéis e mostrando as consequências de nossas ações.

"E às vezes essa ambivalência sugere o real; isto é, como a arte da apropriação trabalha para revelar as ilusões da representação, ela pode atravessar o anteparo-imagem."

Hal Foster, O Retorno do Real

Hal Foster aborda a ideia de que a arte da apropriação desafia as ilusões da representação tradicional, revelando as complexidades subjacentes ao que é percebido como real. Na obra de Alexandre Mury, a sereia, uma figura mítica tradicionalmente idealizada, é reapropriada para expor as realidades cruéis da degradação ambiental. A sereia atravessada por um anzol e envolta em resíduos plásticos desmantela a imagem encantadora da mitologia, apresentando uma realidade perturbadora que desafia as expectativas do espectador.

"no interior da obra que se encontra o fora absoluto-exterior radical à prova do qual a obra se forma, como se o que está mais fora dela fosse sempre, pra aquele que escreve, seu ponto mais íntimo, de modo que ele precisa, por um movimento muito arriscado, ir incessantemente até o extremo limite do espaço, manter-se como que no fim de si mesmo, no fim do gênero que ele acredita seguir, da história que ele acredita contar, e de toda escrita, ali onde não pode mais continuar: é ali que ele deve ficar, sem ceder, para que ali, em certo momento, tudo comece."


Maurice Blanchot, O livro por vir

Maurice Blanchot discute a ideia de que a obra de arte se forma a partir de um "fora absoluto" que desafia o artista a explorar os limites de sua expressão. Mury, ao criar a imagem perturbadora da sereia, desafia os limites da representação e da iconografia tradicional, explorando um "fora absoluto" de significados. A representação da sereia em sofrimento, atravessada por um anzol e cercada por poluição, reflete uma exploração dos limites da beleza mítica e da realidade brutal.

"O homem existe historicamente, apenas sob esta tensão: ele pode ser humano apenas enquanto transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominá-lo e, eventualmente, de destruir sua própria animalidade [foi nesse sentido que Kojève pôde escrever que o 'homem' é uma doença mortal do animal]".

Giorgio Agamben, O Aberto: O Homem e o Animal

Giorgio Agamben fala sobre a tensão entre a humanidade e a animalidade, onde o humano transcende o animal através da negação e destruição de sua própria natureza. A obra de Mury reflete essa tensão ao mostrar a sereia, uma figura híbrida de humano e animal, em um estado de captura e sofrimento, simbolizando a destruição da natureza pelo homem. A sereia atravessada por um anzol e cercada por resíduos plásticos exemplifica a violência humana contra a natureza, ressaltando a tensão entre humanidade e animalidade.

"Iara", 1888, Olavo Bilac


Vive dentro de mim, como num rio,

Uma linda mulher, esquiva e rara,

Num borbulhar de argênteos flocos, Iara

De cabeleira de ouro e corpo frio.

Entre as ninfeias a namoro e espio:

E ela, do espelho móbil da onda clara,

Com os verdes olhos úmidos me encara,

E oferece-me o seio alvo e macio.

Precipito-me, no ímpeto de esposo,

Na desesperação da glória suma,

Para a estreitar, louco de orgulho e gozo...

Mas nos meus braços a ilusão se esfuma:

E a mãe-d'água, exalando um ai piedoso,

Desfaz-se em mortas pérolas de espuma.

A análise semiológica da palavra "rara" nas obras de Bilac e Mury revela como um mesmo termo pode ser reinterpretado para transmitir diferentes mensagens e reflexões contextuais. Em Bilac, "rara" exalta a beleza idealizada e inacessível da figura mítica, enquanto em Mury, "rara" se transforma em um poderoso símbolo de fragilidade e urgência ecológica. Ambas as obras utilizam a palavra para destacar a singularidade e a preciosidade de seus objetos de estudo, mas com propósitos e contextos que refletem as preocupações e valores de suas respectivas épocas. 

"Na obra de arte, a autenticidade não deriva do fato de que ela reproduz determinada realidade, mas da forma como ela representa essa realidade; a obra de arte é autêntica na sua autenticidade de representação." 

Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica

Walter Benjamin sugere que a autenticidade da obra de arte está na maneira como ela representa a realidade, e não na reprodução exata dessa realidade. A sereia de Mury, ao representar a degradação ambiental de maneira simbólica e perturbadora, estabelece sua autenticidade na forma de representação. A imagem da sereia, mutilada e cercada por poluição, não busca reproduzir uma realidade literal, mas sim representar criticamente as consequências da ação humana sobre o meio ambiente.

O Silêncio das Sereias

Franz Kafka


Comprovação de que mesmo meios insuficientes, e até infantis, podem conduzir à salvação.


A fim de proteger-se das sereias, Ulisses entupiu os ouvidos de cera e mandou que o acorrentassem com firmeza ao mastro. É claro que, desde sempre, todos os outros viajantes teriam podido fazer o mesmo (a não ser aqueles aos quais as sereias atraíam já desde muito longe), mas o mundo todo sabia que de nada adiantava fazê-lo.


O canto das sereias impregnava tudo -- que dirá um punhado de cera --, e a paixão dos seduzidos teria arrebentado muito mais do que correntes e mastro. Nisso, porém, Ulisses nem pensava, embora talvez já tivesse ouvido falar a respeito; confiava plenamente no punhado de cera e no feixe de correntes, e, munido de inocente alegria com os meiozinhos de que dispunha, partiu ao encontro das sereias.


As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio. É certo que nunca aconteceu, mas seria talvez concebível que alguém tivesse se salvado de seu canto; de seu silêncio, jamais. O sentimento de tê-las vencido com as próprias forças, a avassaladora arrogância daí resultante, nada neste mundo é capaz de conter.


E, de fato, essas poderosas cantoras não cantaram quando Ulisses chegou, seja porque acreditassem que só o silêncio poderia com tal opositor, seja porque a visão da bem-aventurança no rosto de Ulisses -- que não pensava senão em cera e correntes -- as tenha feito esquecer todo o canto.

Ulisses, contudo, e, por assim dizer, não ouviu-lhes o silêncio; acreditou que estivessem cantando e que somente ele estivesse a salvo de ouvi-las; com um olhar fugaz, observou primeiro as curvas de seus pescoços, o respirar fundo, os olhos cheios de lágrimas, a boca semi-aberta; mas acreditou que tudo aquilo fizesse parte das árias soando inaudíveis ao seu redor. Logo, porém, tudo deslizou por seu olhar perdido na distância; as sereias literalmente desapareceram, e, justo quando estava mais próximo delas, ele já nem mais sabia de sua existência.


Elas, por sua vez, mais belas do que nunca, esticavam-se, giravam o corpo, deixavam os cabelos horripilantes soprar livres ao vento, soltando as garras na rocha; não queriam mais seduzir, mas somente apanhar ainda, pelo máximo de tempo possível, o reflexo dos grandes olhos de Ulisses.

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas então; mas permaneceram: Ulisses, no entanto, escapou-lhes.

Dessa história, porém, transmitiu-se ainda um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astuto, uma tal raposa, que nem mesmo a deusa do destino logrou penetrar em seu íntimo; embora isto já não seja compreensível ao intelecto humano, talvez ele tenha de fato percebido que as sereias estavam mudas, tendo então, de certo modo, oferecido a elas e aos deuses toda a simulação acima tão-somente como um escudo.  

Kafka sugere que o silêncio pode ser uma arma mais poderosa do que o canto, subvertendo as expectativas sobre o mito. Mury, por sua vez, subverte a imagem tradicional da sereia, representando-a em um estado de captura e sofrimento, destacando a degradação ambiental. Ambos exploram a ideia de que a força pode residir na percepção e na reinterpretação dos mitos.

"A estética é uma política dos sentidos, que denuncia e redistribui as partes do sensível." 

Jacques Rancière, O Destino das Imagens

Jacques Rancière vê a estética como uma política dos sentidos, onde a arte redistribui e denuncia o que é percebido como sensível. A obra de Mury redistribui o sensível ao representar a sereia de maneira que denuncia a poluição e a destruição ambiental, provocando uma nova percepção crítica. A sereia, pendurada de cabeça para baixo e envolta em resíduos plásticos, denuncia visualmente a degradação ambiental, redistribuindo a percepção do espectador sobre a natureza.

"O encontro do imaginário"

Maurice Blanchot

(tradução Leyla Perrone-Moisés)


As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia, que apenas dava a entender em que direção se abriam as verdadeiras fontes e a verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus cantos imperfeitos, que não passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em direção àquele espaço onde o cantar começava de fato. Elas não o enganavam, portanto, levavam-no realmente ao objetivo. Mas, tendo atingido o objetivo, o que acontecia? O que era esse lugar? Era aquele onde só se podia desaparecer, porque a música, naquela região de fonte e origem, tinha também desaparecido, mais completamente do que em qualquer outro lugar do mundo; mar onde, com orelhas tapadas, soçobravam os vivos e onde as Sereias, como prova de sua boa vontade, acabaram desaparecendo elas mesmas.


De que natureza era o canto das Sereias? Em que consistia seu defeito? Por que esse defeito o tornava tão poderoso? Alguns responderam: era um canto inumano – um ruído natural, sem dúvida (existem outros?), mas à margem da natureza, de qualquer modo estranho ao homem, muito baixo e despertando, nele, o prazer extremo de cair, que não pode ser satisfeito nas condições normais da vida. Mas, diziam outros, mais estranho é o encantamento: ele apenas reproduzia o canto habitual dos homens, e, porque as Sereias, que eram apenas animais, lindas em razão do reflexo da beleza feminina, podiam cantar como cantam os homens, tornavam o canto tão insólito que faziam nascer, naquele que o ouvia, a suspeita da inumanidade de todo canto humano. Teria sido então por desespero que morreram os homens apaixonados por seu próprio canto? Por um desespero muito próximo do deslumbramento. Havia algo de maravilhoso naquele canto real, canto comum, secreto, canto simples e cotidiano, que fazia reconhecer de repente, cantado irrealmente por potências estranhas e, por assim dizer, imaginárias, o canto do abismo que, uma vez ouvido, abria em cada fala, uma voragem e convidava fortemente a nela desaparecer.


Não devemos esquecer que esse canto se destinava a navegadores, homens do risco e do movimento ousado, e era também ele uma navegação: era uma distância, e o que revelava era a possibilidade de percorrer essa distância, de fazer, do canto, o movimento em direção ao canto, e desse movimento, a expressão do maior desejo. Estranha navegação, mas em busca de que objetivo? Sempre foi possível pensar que todos aqueles que dele se aproximaram apenas chegaram perto, e morreram por impaciência, por haver prematuramente afirmado: é aqui; aqui lançarei âncora. Segundo outros, era, pelo contrário, tarde demais: o objetivo havia sido sempre ultrapassado; o encantamento, por uma promessa enigmática, expunha os homens a serem infiéis a eles mesmos, a seu canto humano e até à essência do canto, despertando a esperança e o desejo de um além-maravilhoso, e esse além-só representava um deserto, como se a região-mãe da música fosse o único lugar totalmente privado de música, um lugar de aridez e secura onde o silêncio, como o ruído, barrasse, naquele que havia tido aquela disposição, toda via de acesso ao canto. Havia, pois um princípio malévolo naquele convite às profundezas? Seriam Sereias, como habitualmente nos fazem crer, apenas vozes falsas que não deviam ser ouvidas, o engano e a sedução aos quais somente resistiam os seres desleais e astutos?


Houve sempre, entre os homens, um esforço pouco nobre para desacreditar as Sereias, acusando-as simplesmente de mentira: mentirosas quando cantavam, enganadoras quando suspiravam, fictícias quando eram tocadas; em suma, inexistentes, de uma inexistência pueril que o bom senso de Ulisses é suficiente para exterminar.


É verdade, Ulisses as venceu, mas de que maneira? Ulisses, a teimosia e a prudência de Ulisses, a perfídia que lhe permitiu gozar do espetáculo das Sereias sem correr risco e sem aceitar as consequências, aquele gozo covarde, medíocre tranquilo e comedido, como convém a um grego da decadência, que nunca mereceu ser o herói da Ilíada, aquela covardia feliz e segura, aliás fundada num privilégio que o coloca fora da condição comum, já que os outros não tiveram direito à felicidade da elite, mas somente ao prazer de ver seu chefe se contorcer de modo ridículo, com caretas de êxtase no vazio, direito também de dominar seu patrão (nisso consiste, sem dúvida, a lição que ouviam, o verdadeiro canto das Sereias para eles): a atitude de Ulisses, a espantosa surdez de quem é surdo porque ouve, bastou para comunicar às sereias um desespero até então reservado aos homens, e para fazer delas, por desespero, belas moças reais, uma única vez reais e dignas de suas promessas, capazes, pois de desaparecer, na verdade, e na profundeza de seu canto.

Vencidas as sereias, pelo poder da técnica, que pretenderá sempre jogar sem perigo com as potências irreais (inspiradas), Ulisses não saiu, porém, ileso. Elas o atraíram para onde ele não queria cair e, escondidas no seio da Odisséia, que foi seu túmulo, elas o empenharam, ele e muitos outros, naquela navegação feliz, infeliz, que é a da narrativa, o canto não mais imediato, mas contado, assim tornado aparentemente inofensivo, ode transformada em episódio.

Blanchot sugere que o canto das sereias é imperfeito e leva ao desaparecimento. Blanchot menciona que o canto das sereias é destinado aos navegadores, homens do risco. Mury, ao representar a sereia em meio a resíduos plásticos, ilustra a imperfeição do progresso humano e a consequente destruição ambiental, onde a beleza natural desaparece. A ambiguidade entre o encantamento das sereias e a realidade da destruição é central tanto em Blanchot quanto em Mury. 

"Os símbolos são as ‘chaves’ da nossa memória cultural e, por conseguinte, devemos esforçar-nos para individualizar cada conjunto de símbolos que formam o fundo de uma cultura particular." 

Ernst Gombrich, Arte e Ilusão

Ernst Gombrich fala sobre a importância dos símbolos como chaves da memória cultural e a necessidade de individualizar esses conjuntos simbólicos. Mury utiliza a figura simbólica da sereia para acessar e criticar a memória cultural associada à natureza e à mitologia, oferecendo uma nova interpretação. A sereia, tradicionalmente um símbolo de beleza e mistério, é recontextualizada na obra de Mury para criticar a poluição e a destruição ambiental, desafiando a memória cultural estabelecida.

Influências e referências na conceituação da obra

A obra de Alexandre Mury se destaca pela sua tendência em ir além das práticas convencionais da escultura e instalação, adotando uma abordagem mais conceitual e crítica. A obra de Mury transita entre a estética visual e a profundidade conceitual, buscando engajar o espectador de forma reflexiva e sensível, transcendendo a mera representação superficial para explorar camadas mais complexas de significado e crítica.

A obra de Alexandre Mury revela uma ampla gama de conexões com diversas correntes artísticas e conceituais, resultando em uma obra complexa e densa. Por meio de elementos como logos, pathos e ethos, Mury mergulha em narrativas míticas e críticas contemporâneas, desafiando convenções estéticas e psicológicas. A abordagem de Mury ressoa com a busca pela independência de identidade e gênero, a crítica ao consumismo e a preocupação ambiental, refletindo um mergulho profundo na estética e história da arte contemporânea.


Cópia romana de um modelo helenístico tardioO rapto de GanímedesSéculo II d.C.EsculturaTribuna di Palazzo Grimani

Nesta cópia romana de um modelo helenístico tardio, Zeus, personificado na águia, sequestra o jovem Ganímedes. A escultura suspensa no teto da rotunda no palácio Grimani e a Sereia de Mury representam narrativas mítica carregadas de logos (argumentação lógica), pathos (emoção) e ethos (caráter moral), cada uma com sua interpretação única e complementar.


O uso inteligente dos aspectos retinianos, ou seja, ligados à percepção visual e sensorial, potencializa o impacto e a eficácia das obras, tornando-as poderosas ferramentas de expressão artística. A escolha da suspensão da escultura e o ambiente em que são exibidas desempenham um papel fundamental na maneira como o espectador interage com a arte, convidando a uma imersão mais profunda e multifacetada na narrativa representada. 


Hans BellmerLa poupee1938-1939Livro impresso

Hans Bellmer foi um artista surrealista alemão conhecido por suas esculturas e fotografias perturbadoras. Ele é especialmente reconhecido por suas representações de bonecas disformes e desconcertantes. Bellmer produziu uma série de obras que desafiavam as convenções estéticas e psicológicas de sua época, incorporando elementos de voyeurismo, violência e sensualidade.


Sua influência é evidente na obra de Alexandre Mury, especialmente em sua instalação "Uiara Rara Predadora Presa". A conexão com os manequins de Bellmer pode ser observada nas associações com tortura e sadismo fetichista. Essa ligação revela a influência de Bellmer na exploração de temas psicológicos complexos e na representação de corpos de maneira perturbadora e visceral.


Kiki SmithLilith1994Silicon bronze and glass83.8 × 69.9 × 48.3 cmSan Francisco Museum of Modern Art (SFMOMA)

A escultura de Kiki Smith apresenta uma representação poderosa e complexa da figura mitológica de Lilith. A obra faz uso do simbolismo e da iconografia para evocar tanto aspectos negativos quanto positivos da identidade feminina, destacando o poder e a independência da mulher, além de confrontar a vulnerabilidade e a rebeldia. A representação do corpo humano é fundamental para a compreensão da obra, que busca explorar os limites entre o interior e o exterior, desmistificando a anatomia e expondo sua dualidade simbólica.


Portanto, a obra de Mury, ao desafiar a representação tradicional da sereia e ao propor uma reflexão sobre os papéis de gênero e a interdependência entre a opressão das mulheres e a exploração da natureza, ecoa as principais ideias do ecofeminismo. Ele busca uma nova ética que valorize a interdependência, a cooperação e o cuidado com todos os seres vivos e com o planeta, enquanto critica o dualismo cartesiano que separa o sujeito do objeto, o homem da natureza e o racional do emocional.



Niki de Saint PhalleTyrannosaurus Rex (Study for King Kong)1963Mixed Media: Paint, plaster and various objects on wood198 x 122 x 25 cmGalerie Georges-Philippe & Nathalie Vallois

A inclusão de brinquedos de plástico, dragões, aeronaves militares e outros objetos do cotidiano na obra de Saint Phalle podem representar o mundo infantil, a inocência, mas também sugerir uma crítica ao consumismo e à fabricação em massa de produtos que moldam a sociedade moderna. Além disso, a presença de brinquedos e objetos pode evocar a ideia de metamorfose, transformação e a atemporalidade da infância, convidando os espectadores a considerar as implicações psicológicas e sociais dessas representações. 


Na obra de Mury, a monstruosidade está diretamente ligada aos efeitos devastadores da poluição plástica na vida marinha e nos ecossistemas aquáticos. O engajamento dos artistas em situações pessoais, sociais e ambientais evidenciam questões críticas e provocam uma reflexão profunda. Este paralelo entre "Tyrannosaurus Rex" de Niki de Saint Phalle e "Uiara Rara Predadora Presa" de Alexandre Mury ressalta a persistência da arte em contextualizar e incitar a discussão sobre questões relevantes em diferentes momentos e realidades históricas e sociais.


Robert SmithsonGlue Pour1969

Entre 1969 e 1970, Robert Smithson criou três esculturas de “derramamento”. Em todas as três, um material industrial foi preparado e despejado morro abaixo em um local remoto ou negligenciado e deixado para solidificar. Smithson, com sua abordagem multidisciplinar e suas incursões em ambientes naturais e urbanos, promoveu um diálogo entre a estética, a geologia e a história. Sua abordagem provocou reflexões sobre a relação entre a arte e a degradação, a identidade fluida do tempo presente e a otimização de espaços não convencionais.


As abordagens de Smithson e Mury suscitam reflexões sobre a impermanência, a mimese da história e a coexistência da arte com o meio ambiente. Ambos os artistas desafiam as narrativas convencionais e abrem espaço para uma compreensão mais complexa da relação entre arte, natureza e tempo. Além disso, a natureza conceptual e a interdisciplinaridade evidente nas obras de Smithson e Mury apontam para a importância da estética crítica e da integração da arte com questões contemporâneas, sejam elas ambientais, sociopolíticas ou culturais. 


Marc BijlDark Symbolism2003plaster, tar,Coleção particular

A abordagem obscura e multifacetada de Marc Bijl, que incorpora elementos visuais emprestados de subculturas como punk e gótica, anarquismo, política, religião e globalização, compartilha algumas conexões temáticas com a obra de Alexandre Mury, especialmente em relação à crítica social e ambiental.


Tanto a obra de Marc Bijl quanto a de Alexandre Mury abordam questões contemporâneas profundas, como a crítica à superfície e aos mitos culturais, além de explorarem a interseção entre a política, as estruturas de poder e a cultura visual. Ambos os artistas buscam expor as contradições e controvérsias dentro da sociedade moderna, embora com enfoques e linguagens visuais distintas.

Notas sobre o Processo Criativo de Alexandre Mury

Alexandre Mury é um artista cuja prática está profundamente enraizada na exploração das simbologias e na história da arte e da cultura. Mury cria obras que não apenas refletem sobre o estado atual do mundo, mas também dialogam com teorias complexas e profundas sobre a representação, a identidade e a cultura. Sua prática pode ser vista como uma série de camadas, cada uma revelando uma nova dimensão de significado e interpretação.


A sereia de Alexandre Mury, apresentada em um estado de degradação e sofrimento, é um exemplo concreto de como ele aplica essas teorias em sua prática artística. A obra não apenas desafia as percepções tradicionais da mitologia, mas também oferece uma crítica contundente sobre a intervenção humana na natureza e os impactos do capitalismo. Ao recontextualizar símbolos culturais, Mury convida o espectador a refletir sobre questões ambientais contemporâneas e a reconsiderar a autenticidade da representação na arte.


1 - Exploração da Identidade e Autoafirmação:

Inspirado por Nietzsche, Mury usa sua arte como um meio de autoexploração e afirmação, desafiando convenções e buscando continuamente redefinir-se.

“Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos.” (Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência)

Nietzsche fala sobre a morte de Deus como a morte das crenças absolutas e universais. Na obra de Mury, essa ideia se reflete na desconstrução de mitos e ícones tradicionais, como a sereia, que é apresentada em um estado de degradação e vulnerabilidade. A sereia presa e atravessada por um anzol simboliza a perda de encanto e mistério, substituída por uma realidade brutal e material.


2 - Análise Interdisciplinar:

Com a abordagem de Warburg e Panofsky, Mury analisa minuciosamente os símbolos, considerando não apenas sua aparência, mas também seu contexto histórico e cultural.

“Muitas vezes inventamos o futuro a partir de fragmentos do passado.” (Aby Warburg)

Através do conceito de 'Pathosformeln', a prática artística de Alexandre Mury pode ser compreendida como uma continuação da tradição visual que utiliza formas e gestos emocionais intensos para comunicar significados profundos e duradouros. Esta abordagem permite que sua arte transcenda a mera crítica social ou ambiental, engajando o espectador em um nível emocional visceral.

Este tipo de representação pode ser comparado a figuras clássicas de martírios e sacrifícios, onde o corpo dilacerado transmite uma poderosa carga emocional e simbólica.  Aby Warburg identificou nas Pathosformeln a capacidade de certas formas visuais de transportar e comunicar emoções através do tempo. Alexandre Mury, ao recontextualizar e reutilizar essas fórmulas emocionais em seu trabalho, cria uma ponte entre a tradição e a contemporaneidade.

“A iconografia é uma descrição e classificação de imagens.” (Erwin Panofsky)

Panofsky enfatiza a importância de entender as imagens em seu contexto histórico e cultural. A obra de Mury pode ser vista como uma reinterpretação da iconografia tradicional da sereia, incorporando elementos modernos e críticos. A sereia de Mury, sem feições faciais e envolta em resíduos, desafia a iconografia tradicional e convida à reflexão sobre a destruição do meio ambiente.


3 - Arquetípicos e Inconsciente Coletivo:

Influenciado por Jung, Mury incorpora arquétipos em suas obras, conectando-se com o inconsciente coletivo e evocando ressonâncias profundas no espectador.

“Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta.” (Carl G. Jung)

Jung fala sobre a importância da introspecção e do inconsciente coletivo. A sereia de Mury pode ser vista como uma representação do inconsciente coletivo, uma figura mítica que emerge para refletir as preocupações e os medos contemporâneos. A imagem da sereia em sofrimento pode ser interpretada como um símbolo do inconsciente coletivo em resposta à crise ambiental.


4 - Multiplicidade de Significados:

Barthes e Eco incentivam Mury a criar obras abertas a múltiplas interpretações, onde o espectador é convidado a participar ativamente na construção do significado.

“A morte do autor é o nascimento do leitor.” (Roland Barthes)

Barthes sugere que a interpretação de uma obra deve ser deixada ao leitor/espectador. Mury cria obras abertas a múltiplas interpretações, permitindo que cada espectador projete suas próprias preocupações e entendimentos na figura da sereia. A ambiguidade da sereia presa, que pode simbolizar tanto a degradação ambiental quanto a exploração da feminilidade, deixa espaço para interpretações variadas.

“A obra em aberto é aquela que pode ser interpretada de diversas formas.” (Umberto Eco, Obra Aberta)

Eco fala sobre a polissemia da arte e sua abertura a diferentes interpretações. A sereia de Mury, com sua representação ambígua e perturbadora, é um exemplo de obra aberta que convida a múltiplas leituras. O estado de captura e sofrimento da sereia pode ser interpretado como uma crítica tanto ambiental quanto social, incluindo questões de gênero.


5 - Desconstrução e Recontextualização:

Derrida e Latour inspiram Mury a desconstruir símbolos tradicionais e a explorar a interação entre natureza e cultura, criando narrativas visuais que desafiam e provocam o pensamento.

“Não há fora do texto.” (Jacques Derrida)

Derrida sugere que tudo pode ser interpretado como texto, sem um significado externo fixo. A obra de Mury pode ser vista como um texto visual que precisa ser lido e interpretado, com múltiplos significados possíveis. A sereia e os resíduos plásticos formam um texto visual que comunica mensagens sobre poluição, mitologia e crítica social.

"Nunca fomos modernos." (Bruno Latour, "We Have Never Been Modern")

Latour critica a separação entre natureza e cultura, algo que Mury explora ao misturar elementos naturais e artificiais em suas obras. Latour’s Actor-Network Theory também ressoa na forma como Mury vê os símbolos e objetos como mediadores ativos que moldam e são moldados pelas interações humanas.


6 - Sobrevivência e Transformação das Imagens:

Didi-Huberman oferece a Mury a ideia de que as imagens têm uma história contínua, sendo constantemente reinterpretadas e transformadas.

“As imagens são a memória do impossível.” (Georges Didi-Huberman)

Didi-Huberman fala sobre o poder das imagens em capturar o impossível e o invisível. A imagem da sereia de Mury capta a tensão entre a beleza mítica e a destruição moderna, algo que parece impossível de reconciliar. A sereia, uma figura de fantasia e beleza, é representada de maneira que evidencia sua vulnerabilidade e a destruição ambiental.

"O capitalismo passa a ser um episódio da paleontologia" 

Viveiros de Castro, Metafísicas Canibais

Viveiros de Castro sugere que o capitalismo, ao ser analisado sob uma perspectiva crítica, pode ser visto como um fenômeno fossilizado, uma relíquia do passado. A obra de Mury, ao retratar a sereia em um estado de degradação, critica a influência destrutiva do capitalismo sobre o meio ambiente, sugerindo que essas práticas podem ser vistas como obsoletas e prejudiciais. A sereia envolta em resíduos plásticos simboliza a poluição e o impacto ambiental resultante do consumismo e das práticas capitalistas, posicionando essas questões como fósseis de uma era que precisa ser superada.

Notas sobre 'Ecofeminismo'

O termo "ecofeminismo" surgiu na década de 1970, e a ele se atribui a filósofa francesa Françoise d'Eaubonne, que o utilizou em sua obra "Le Féminisme ou la Mort" (O Feminismo ou a Morte) em 1974.

O ecofeminismo estabelece uma conexão entre a opressão das mulheres e a exploração da natureza. Ele argumenta que a dominação masculina sobre as mulheres e a exploração dos recursos naturais estão interligadas, e que a libertação de um depende da libertação do outro.

Principais ideias do ecofeminismo:

Notas sobre o 'Dicionário do Folclore Brasileiro' 

Luís da Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, dedica um espaço especial à figura da sereia, uma das mais fascinantes criaturas do imaginário popular brasileiro.

A Sereia nas Páginas de Cascudo:

Cascudo, com sua paixão pela cultura popular, tece um rico painel sobre a sereia brasileira, explorando suas diversas representações e significados ao longo da história e em diferentes regiões do país.


A origem exata do nome "Uiara" é um tema de debate entre os estudiosos. Alguns sugerem que ele possa ter origem em línguas tupi-guarani, enquanto outros apontam para influências africanas. A verdade é que a miscigenação cultural do Brasil tornou difícil identificar uma única origem para muitos dos nossos mitos e lendas. 



A obra de Luís da Câmara Cascudo é um legado fundamental para os estudos sobre o folclore brasileiro. No entanto, é importante ser analisada de forma crítica, considerando tanto seus méritos quanto suas limitações. A complexidade do folclore brasileiro exige um olhar multidisciplinar e uma constante revisão dos conhecimentos existentes. 



Falta de Rigor Científico: Uma das críticas mais comuns a Cascudo é a suposta falta de rigor científico em suas pesquisas, com a ausência de um aparato crítico mais robusto, como a citação detalhada de fontes e a construção de um aparato teórico mais sólido.


Subjetividade e Generalizações: Outra crítica frequente é a natureza subjetiva de suas análises e a tendência a generalizações, o que, para alguns, compromete a validade de suas conclusões.


Erros e Inacurações: Alguns estudiosos apontam a existência de erros e imprecisões em suas obras, o que, em alguns casos, pode levar a interpretações equivocadas sobre o folclore brasileiro.

Notas sobre a Sereia na Cosmovisão Indígena 


Ao generalizar a figura da sereia indígena, arriscamos perpetuar estereótipos e de desconsiderar a diversidade cultural desses povos. É fundamental que reconheçamos que cada etnia indígena possui sua própria visão de mundo e suas próprias representações míticas. A interpretação da arte indígena é um processo complexo, que exige um profundo conhecimento da cultura e da cosmologia de cada povo. 



Peculiaridades da sereia indígena:


Sereias em outras culturas

Africanas:

Europeias:


Here are the key points about the artwork "Uiara Rara Predadora Presa" by Alexandre Mury:

These points encapsulate the essence and significance of the artwork, offering a holistic view of its themes, construction, and intended impact on the viewer.



The artwork "Uiara Rara Predadora Presa" by Alexandre Mury encapsulates several profound cultural themes through its intricate symbolism and visual narrative: