Peça #22:

"Joãozinho e Teseu" (Labirinto de barbante, passarinho e migalhas de pão)

A obra "Joãozinho e Teseu" transcende a simples fusão de narrativas para criar uma instalação que explora temas de caminhos e trajetos de maneira inovadora e reflexiva. Inspirada em "Joãozinho e o Pé de Feijão", que utiliza migalhas de pão para marcar seu caminho, e nos mitos de Teseu, que usa o fio de Ariadne para navegar pelo labirinto, a instalação estabelece um diálogo entre o linear e o labiríntico, o simples e o complexo, e o que pode ser seguido e o que pode ser perdido.

A proposta de Mury vai além das artes visuais para oferecer uma análise crítica sobre como as histórias são construídas e se entrelaçam ao longo do tempo. Ao unir essas duas narrativas — uma do folclore infantil e outra da mitologia grega —, Mury ilumina como muitas histórias da literatura e da cultura são, em essência, releituras e adaptações de estruturas anteriores. A obra utiliza essa lógica para criar uma metanarrativa visual, desafiando a visão do artista como mero recontadores e posicionando-o como criador ativo de novas histórias.

O percurso da instalação começa com um caminho de migalhas de pão no chão, levando o espectador a uma escultura de um passarinho, que remete ao animal que consome o rastro deixado por Joãozinho. A instalação se transforma então: um fio de barbante, simbolizando o fio de Ariadne, traça um labirinto intricado. Esta transição do linear ao labiríntico reflete como as histórias podem bifurcar, se complicar e se perder, assim como as influências que permeiam a criação artística.

Mury propõe uma abordagem que vai além dos métodos tradicionais de representação, onde a arte não é apenas um meio de narrar, mas uma forma de criar uma narrativa própria. As migalhas de pão e o barbante não são meros símbolos; são elementos narrativos que moldam uma experiência espacial, incentivando o espectador a participar ativamente e estabelecer conexões que vão além do imediato.

"Joãozinho e Teseu" também oferece uma reflexão sobre a continuidade entre diferentes histórias e campos do conhecimento. Assim como as narrativas literárias se constroem a partir de influências passadas, a obra integra visualidade com profundidade conceitual, promovendo um diálogo enriquecedor com disciplinas como literatura, filosofia e história.

Portanto, a instalação não é apenas um caminho a ser percorrido fisicamente, mas uma jornada intelectual que convida o espectador a refletir sobre como histórias — sejam visuais ou textuais — se formam, se conectam e se reinventam ao longo do tempo.

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George Frederic WattsO Minotauro1885Óleo sobre tela118 × 94,5 cmTate

A obra O Minotauro, de George Frederic Watts, é uma pintura profundamente alegórica e simbólica, que se inspira na mitologia grega para falar de temas contemporâneos ao artista, especialmente a inocência perdida, representada pelo passarinho esmagado na mão da criatura. Watts produziu essa imagem não apenas como uma representação do monstro mitológico, mas como uma crítica às práticas opressivas e abusivas da sociedade vitoriana de seu tempo. Para ele, o Minotauro simboliza o poder destrutivo do instinto brutal sobre a pureza e a juventude, refletindo, de forma metafórica, questões graves como a exploração infantil.

A figura do labirinto e do Minotauro percorre uma longa trajetória de interpretações. Desde o mito clássico, onde o labirinto foi construído por Dédalo para conter o monstro, até as releituras feitas por autores como Borges e Umberto Eco, o labirinto e o Minotauro adquiriram conotações filosóficas, psicológicas e até existenciais. Borges, por exemplo, no conto A Casa de Asterion, narra a vida solitária e obsessiva do Minotauro, que, mais do que um monstro, se torna uma figura de reflexão sobre a solidão, o isolamento e a natureza do labirinto interno que habita cada indivíduo.

Umberto Eco, por sua vez, levou a metáfora do labirinto a um novo patamar ao discutir três tipos de labirintos em suas obras: o unicursal (um caminho que conduz à redenção, como nos labirintos das catedrais), o multicursal (um lugar de escolhas e erros, como o labirinto de Creta), e o labirinto rizomático ou de rede, que é interminável e sem saída definitiva. Esse terceiro tipo, que Eco associa ao conhecimento contemporâneo e à complexidade das redes digitais, desafia a ideia de linearidade do tempo e espaço, oferecendo uma visão infinita de possibilidades e interpretações.

No contexto da obra Joãozinho e Teseu, sua instalação dialoga poeticamente com a complexidade desses conceitos. A presença do passarinho, remanescente da pureza que foi oprimida pelo Minotauro de Watts, agora se reinterpreta pela narrativa de Joãozinho, um personagem inocente, e Teseu, o herói mítico, criando uma ponte entre culturas e entre figuras do folclore e da mitologia que habitam os labirintos culturais e simbólicos de cada tempo. A obra propõe, assim, uma continuidade entre as narrativas universais, como as de Teseu, e aquelas que se recontam no imaginário popular, explorando o valor da memória, da redenção e da superação.

Dessa maneira, a peça não só sugere um labirinto de interpretações, mas também convida o espectador a confrontar as camadas de passado, presente e futuro contidas nesses mitos que se renovam e se ressignificam na arte e na literatura. Essa relação reforça uma ideia de continuidade entre as histórias e as figuras arquetípicas, sugerindo que o labirinto, mais do que um espaço físico ou uma armadilha para o monstro, é uma construção que espelha a complexidade humana e as suas incessantes buscas por compreensão e transcendência.