Eu sou a pintura

Elisa Byington 

A pintura é a ação. O corpo, a superfície sobre o qual o artista plasma tintas, faz colagens, superpõe panos e adereços. Ele é sujeito e objeto da obra. A fotografia é parte da construção e torna tangível o instante, a pose, o travestimento de natureza efêmera. As imagens ambíguas e transgressivas se servem do jogo de palavras, fantasias e recursos do corpo que encarna sentimentos, desejos e sonhos, supostamente não seus.

Título da obra: Santa VerônicaCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury

Os tableaux vivants de Alexandre Mury usam a parodia e o pastiche para encenar uma outra historia, outra arte, a partir de referencias célebres da pintura e da cultura em geral. Eles resultam de um processo ao qual o artista se entrega durante dias de árdua e meticulosa preparação de cenários, figurinos, maquiagem, para criar o simulacro fantasioso no qual se imerge corpo e alma.

Título da obra: Arranjo em cinzaCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury

O original não existe. Já se foi há muito no mundo de imagens virtuais com as quais o artista convive em suas viagens pelo web, onde tempos e lugares se confundem em uma simultaneidade desnorteante. Navegando nesta fonte infinita, Mury elege imagens icônicas com as quais estabelecer um dialogo, uma relação que inclua o olhar do observador em um jogo triangular. Na articulação de uma linguagem própria, ele aproxima imagens cultas e triviais, sacras e profanas, sublimes e banais, que superpõem mundos diversos e solicitam a memoria do espectador/interlocutor para a produção de sentido. A arte fala sobre a arte, o presente desliza no passado e vice-versa. É neste caráter dialógico da obra, que o artista escreve seu próprio tempo e identidade. 

Título da obra: O bebedor de absintoCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury
Título da obra: O homem CactusCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury
Título da obra: LeviatãCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury

Mury promove a discussão das noções tradicionais de feminino e masculino nas imagens que testam os limites da androginia visual. Os travestimentos põem à prova o corpo do artista em sua identidade de gênero, raça, sexo: mulher-barbada, homem-cactus, morto-vivo, representação negra de figuras brancas. Ele empreende uma leitura carnavalizada - no sentido de mundo às avessas, definido por Michail Bakhtine - dos ícones da cultura e dos grandes personagens das letras, da história, da religião, da mitologia, feita com roupas, perucas, atributos postiços. O resultado é uma identidade duplicada, fragmentada e multiplicada em pseudo-autorretratos que a cada vez nos dão um rosto diverso, outra pessoa, outra historia, outra cor.

Título da obra: Trabalhador de CalCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury
Título da obra: A noite e os Gênios do Estudo e do AmorCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury

Para a nova série de trabalhos, Mury decide buscar na cor mais um fio condutor para suas experiências. Mas, afinal, o que é a cor? é luz ou matéria? Coisa ou pintura? Vibração ótica ou tecla de uma escala cromática espiritual, como queria Kandinsky? Na medicina de Hipocrates, a teoria do humores apontava a biles negra como razão da melancolia e a biles amarela, a da cólera. Ao tipo sanguíneo, avermelhado nas feições, eram atribuídas características de otimismo e alegria.

Título da obra: O mundo de CristinaCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury

Além das vibrações luminosas e da experiência sensorial, as cores trazem consigo uma historia filosófica, politica, marcada por mudanças constantes ao longo da historia e significados opostos segundo a cultura, propondo outro universo de ambiguidades. O vermelho é cor eclesiástica ou da paixão carnal? É emblema da realeza ou das revoluções? Em sua investigação, Mury entrega-se com rigor à limitação monocromática, mesmo sabendo de antemão que para um “modelo vivo” a experiência jamais será total. Busca referencia em Whistler, Klimt, Kupka, Kokoschka, Picasso, Djanira, elegendo obras que trabalham a cor de maneira particularmente significativa. A adoção da monocromia inibe a exuberância colorística do trabalho anterior forçando-o a uma postura mais analítica, à indagação das características primordiais de definição da forma plástica e do volume, dos segredos do claro-escuro e das gamas cromáticas. Ele se submete à subtração de um vitalismo espontâneo em prol da reflexão e constrição às limitações de cada cor, às exigências de cada uma para que a forma e contornos sejam percebidos.

Título da obra: AtenaCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury

Em poucos anos Mury marcou para si um lugar singular e inconfundível no panorama das artes, jogando com a transgressão aos códigos sociais e o desafio à solenidade repressora dos cânones culturais. Adotou no seu trabalho um léxico de elementos corriqueiros, prosaicos e jocosos, com os quais compôs uma linguagem própria que flerta com o kitsch, abusa do nomadismo identitário que caracterizou a cultura Pop e aposta na liberdade fecunda e regeneradora da arte.

Título da obra: Escala em amareloCriador: Alexandre MuryData de criação: 2014Fotografia / Autorretrato performático© Alexandre Mury

"Eu sou a pintura". Texto Elisa Byington para a mostra individual do artista na Athena Contemporânea Galeria de arte, maio 2014. 

Ficha Técnica

Eu sou a Pintura
16.05.2014 - 14.06.2014
Brasil / Rio de Janeiro / Rio de Janeiro – Galeria AthenaClassificação: ExposiçãoTipo de Evento: IndividualCuradoria: Elisa Byington
Artista participante: Alexandre Mury
Curadoria (adjunta): Afonso Costa

Imagens da exposição

Catálogo da exposição

Athena Contemporanea - Alexandre Mury Eu sou a Pintura.pdf

[ English version ]

I AM THE PAINTING


Painting is the action. The body is the surface on which the artist slaps on paint, makes collages, superimposes fabrics and ornaments. He is the work’s subject and object. Photography is part of the construction and the making of the instant, the pose, the ephemeral dressing up of nature into something tangible. The ambiguous and transgressive images make use of wordplay, fantasies and features of the body that embody feelings, desires and dreams, supposedly not theirs.


Alexandre Mury’s tableaux vivants use parody and pastiche to stage another story, another art form, based on renowned references from famous paintings and culture in general. They result from a process to which the artist dedicates himself during days of painstaking and meticulous preparation of sets, costumes and makeup to create the fanciful simulacrum into which he immerses himself body and soul.


The original does not exist. It vanished a long time ago in the world of virtual images with which the artist coexists in his travels through the web, where time and place are mixed in a bewildering simultaneity. Navigating this infinite source, Mury elects iconic images with which to establish a dialogue, a relationship that includes the viewer's gaze in a triangular game.


Upon articulating his own language, he brings into closer proximity the cultivated and trivial, sacred and profane, sublime and banal images that overlap different worlds and beseech the memory of the viewer/participant to make sense of it. Art speaks to art, the present slides into the past and vice versa. It is in this dialogical nature of the work where the artist writes his own time and identity.


Mury nurtures the discussion of the traditional notions of feminine and masculine in the images that test the limits of visual androgyny. The coverings further test the artist's body with regard to his identity of gender, race, sex; bearded-woman, man-cactus, living-dead, black representation of white figures. He undertakes a carnivalized reading – in the sense of a topsy-turvy world, defined by Mikhail Bakhtin – of the icons of culture and the great characters of literature, history, religion, mythology, prepared from clothing, wigs, hairpieces. The result is a double identity, fragmented and multiplied through pseudo-self-portraits that each and every time give us a different face, another person, another story, another color.


For the new series of works, Mury decides to seek more color as the common thread to his experiences. But ultimately, what color is it? Is it light or matter? Thing or painting? Optical vibration or a chromatic spiritual scale, as Kandinsky desired? In Hippocratic medicine, the theory of humors pointed to black bile as the root of melancholy and yellow bile as that of cholera. To the blood type, reddish in its features, were attributed characteristics of optimism and joy.

Besides the luminous vibrations and sensory experience, colors can bring with them a philosophical history, politics, marked by constant changes throughout history and opposite

meanings depending on the culture, proposing another universe of ambiguity. Is red an ecclesiastical, or carnal passion, color? Is it the emblem of royalty or revolutions? In his research, Mury rigorously delivers himself to monochromatic limitations, even knowing beforehand that for a "live model" the experience will never be complete. He seeks references in Whistler, Klimt, Kupka, Kokoschka, Picasso, Djanira, choosing pieces in which color is worked in a particularly significant way.


The adoption of monochrome inhibits the coloristic exuberance of his previous work, forcing him into a more analytical approach, the question of the primary defining characteristics of visual form and volume, the secrets of chiaroscuro and chromatic ranges. He submits to the subtraction of a spontaneous vitality in favor of reflection and constriction of the limitations of each color, the requirements of each so that the shape and contours are perceived.

In just a few years Mury achieved for himself a unique and distinctive place in the arts panorama, playing with the transgression of social codes and challenging the repressive solemnity of cultural canons. His work adopted a lexicon of everyday, prosaic and humorous elements with which he composed his own language, which flirts with kitsch, abuses the identity nomadism that characterized Pop culture and bets on the fertile freedom and regenerating capacity of art.


ELISA BYINGTON

Sociologist, art critic, curator and doctorate in art history, author of the books Galleria Borghese (2000), Palazzo Pamphilj a Piazza Navona (2001), O projeto do Renascimento (2009), Giorgio Vasari, A Invenção do Artista Moderno (2011), Antonio Dias: Arquivo Íntimo - Trabalhos em Papelão (2013). Collaborated with the magazines Isto É, Bravo!, Republica, Carta Capital, Iberian Art, Icon, Il Giornale dell'arte, Flash Art.


Rádio Roquette-Pinto 94.1 FM


ELISA BYINGTON, Historiadora da Arte e curadora da exposição "EU SOU A PINTURA" fala sobre o trabalho de ALEXANDRE MURY no programa "Arte em Movimento".


por Alvaro Figueiredo (12:30 / 29 / maio / 2014) 

A entrevista realizada na Rádio Roquette-Pinto 94.1 FM com Elisa Byington, historiadora da arte e curadora da exposição "EU SOU A PINTURA", abordou o trabalho de Alexandre Mury no programa "Arte em Movimento", conduzido por Álvaro Figueiredo em maio de 2014. Durante a entrevista, Byington discutiu a obra de Mury e seu impacto no cenário artístico, com foco especial na mostra "EU SOU A PINTURA".

[transcrição adaptada]

Álvaro Figueiredo (AF):
Olá, quando eu era mais jovem, às vezes saía do cinema tão fascinado por um personagem que acabava imitando o cara: sua voz, seus trejeitos, seu andar... Me sentia vivendo as aventuras que tinha visto na tela. Aconteceu com o 007 de Roger Moore, o Inspetor Clouseau de Peter Sellers, com Zelig de Woody Allen... Essas lembranças me vieram à mente quando vi a exposição "Eu sou a pintura" do artista plástico Alexandre Mury. Ele apresenta fotografias incríveis, onde aparece como personagens de obras de arte famosas. É um trabalho meticuloso de caracterização, carregado de significados. Mas, como não sou crítico de arte, convidei a curadora da exposição, Elisa Byington, para conversar sobre esse trabalho.

AF:
Tudo bem, Elisa?

Elisa Byington (EB):
Tudo ótimo, Álvaro.

AF:
É um prazer ter você aqui com a gente.

EB:
Obrigada, o prazer é meu.

AF:
Quando vi as fotos, a primeira coisa que pensei foi: "Cara, esses narcisistas das redes sociais devem estar morrendo de inveja desses selfies maravilhosos do Mury!" [risos] Mas claro, estou brincando...

EB:
São autorretratos elaboradíssimos, na verdade.

AF:
Pois é, né? Não são selfies comuns.

EB:
De jeito nenhum. É uma produção de autorretratos, em que ele se transforma em outras figuras – às vezes humanas, às vezes máscaras, algumas vezes você reconhece, outras não. Ele explora essa androginia visual, transitando livremente entre o masculino e o feminino. Um dos trabalhos mais emblemáticos é a Santa Verônica, onde ele aparece como uma mulher barbada. Não há ali um misticismo tradicional, mas sim uma capacidade incrível de se aprofundar na personagem. Mury é um artista que desafia as nossas percepções.

AF:
Exato! Ele desafia as convenções artísticas e sociais de várias formas.

EB:
Sim, e ele faz isso de uma maneira provocadora, brincando com a solenidade da arte. Na exposição, ele transforma até personagens de Odilon Redon, como o Homem Cactus, em uma performance entre o humor e a melancolia. Isso mostra o quanto ele vai além do simples travestimento. Ele usa objetos cotidianos como perucas, tecidos, e luzes coloridas para construir essas imagens icônicas, provocando reflexões.

AF:
E para quem não conhece, essas fotografias não são uma reprodução exata das obras originais. Ele as reinterpreta, inserindo novos elementos, como sua barba, por exemplo.

EB:
Exatamente, mas há uma foto onde ele remove a barba: a Monalisa. É uma exceção nessa série.

AF:
Sim, mas na maioria, ele está sempre barbado, o que torna ainda mais provocante. Agora, queria falar sobre um elemento novo nessa exposição: as fotos monocromáticas. Pode nos explicar por que ele introduziu isso?

EB:
Acredito que até Mury tenha se surpreendido com o processo. Ele, que sempre trabalhou com cores vibrantes e luzes exuberantes, decidiu explorar os limites de uma paleta restrita. Ao criar uma série inteiramente monocromática, ele se desafiou a estudar as nuances de cada cor. Por exemplo, ele se dedicou a explorar o branco sobre branco, diferentes tonalidades de amarelo e variações de cinza. Curiosamente, ele inclui dois brasileiros nessa série: O Trabalhador de Cal de Djanira, que é todo em branco, e um trabalho de Pedro Américo dedicado ao preto. Esses estudos cromáticos fazem uma interessante conexão com o simbolismo e expressionismo, além de mostrar o quanto ele consegue dialogar com diferentes períodos da história da arte.

AF:
O resultado é incrível! Bom, infelizmente o tempo está curto, mas queria agradecer muito, Elisa, pelas suas palavras e informações. Espero que os ouvintes fiquem curiosos para ver a exposição pessoalmente, porque realmente vale a pena.

EB:
Com certeza. Mury é um artista singular que, em pouco tempo, conquistou um espaço importante no cenário da arte brasileira.

AF:
Minha dica da semana é a exposição "Eu sou a pintura", de Alexandre Mury, em cartaz na Galeria Athena Contemporânea, no Shopping Cassino Atlântico, no final da Avenida Atlântica. De segunda a sexta, das 10h às 19h, e aos sábados, das 10h às 14h, com entrada gratuita. Elisa, muito obrigado novamente! Um ótimo fim de semana a todos, com muita inspiração e arte!



Exposição:“Auto-retratos”Curadoria: Luisa DuarteAno: 2011Local: Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro, RJ, Brasil  
 Exposição: “Fricções Históricas”Curadoria: Vanda KlabinAno: 2013 Local: Caixa Cultural, Rio de Janeiro, RJ

Exposição:Fricções Históricas”Curadoria:  Vanda KlabinAno: 2015Local: Centro Cultural SESC Glória, Vitória, ES

Exposição: "O Catador na Floresta de Signos”Curadoria:  Roberto ConduruAno: 2015Local: Galeria Roberto Alban, Salvador, BA